O Homem Ilustrado, de Ray Bradbury
Não sei se isso acontece com vocês, mas eu tenho alguns autores dos quais sinto uma admiração quase gratuita. Tá, não é exatamente gratuita, esses autores têm vários motivos para serem admirados. Mas é que às vezes eu não conheço tanto de suas obras, mas o que conheço já é suficiente para que eu tenha um carinho especial por eles.Isso aconteceu comigo com o primeiro livro do Ray Bradbury que eu li e que, por acaso, não foi Fahrenheit 451. Foi Licor de Dente-de-Leão. Se me pedirem para contar um pouco sobre o livro eu não vou me lembrar bem, mas eu me lembro do sentimento, e lembro de uma frase, do final do livro: "E, se Douglas se esquecesse, o licor de dente-de-leão estava no porão, em grande número, para cada dia" (trad. de Ryta Vinagre).
Me lembrar mais do que isso é pedir demais, já que li esse livro há muitos anos. Eu estava começando a me tornar leitora — leitora mesmo, de fato, de comprar e ganhar livros de presente. Leio desde sempre, mas sempre foi muito difícil comprar livros quando eu era mais nova. Eu pegava da biblioteca, comprava alguns em alguns sebos, mas não tínhamos dinheiro pra isso. Então, quando as coisas melhoraram, minha mãe começou a me dar livros de presente, e Licor de Dente-de-Leão foi um deles.
Depois de um tempo eu acabei lendo Fahrenheit para uma disciplina de faculdade. A disciplina tratava de distopias, e aí eu fiquei maluca, queria ler todas as distopias do mundo, mas isso se provou uma tarefa muito difícil porque você precisa de estômago pra ler distopias, e eu não estava com esse estômago na época (e ainda não o tenho hoje).
Meu terceiro encontro com Bradbury foi com Algo Sinistro Vem Por Aí, um livro que ficou comigo por muito tempo. Eu até acabei fazendo um texto aqui no blog sobre ele, junto de O Iluminado e Changeling, que são três livros que falam sobre a paternidade e que me chamam muito a atenção.
O tempo passou e eu segui lendo, mas acabei não indo atrás de ler Bradbury, não sei bem o motivo. Acho que foi a ânsia de conhecer outros autores, e querer ler alguns autores todos de uma vez, mas Bradbury ficou para trás.
Até que fui agraciada com um presente da Day Martins, do instagram @dayharabooks, que me enviou O Homem Ilustrado de presente de aniversário do ano passado. Aproveito para abrir um parênteses e convidar a vocês que estão lendo para conhecer o perfil da Day, e para conhecer seu projeto com a Leticia Ferreira, do instagram @entrelinhaspretas, o Raízes do Horror. Elas estão com um catarse para o clube de leitura e fazem um trabalho incrível.
Eu deixo na minha listinha compartilhada da Amazon só autores que eu tenho um carinho especial, porque sei que todos os livros que eu ganhar dali serão especiais (e se você que está lendo quiser me mandar um livro, pode conferir a minha wishlist aqui nesse link). Mas foi uma grata e incrível surpresa a leitura desse livro.
O Homem Ilustrado, de Ray Bradbury (minha edição é da Biblioteca Azul, com tradução de Eric Novello), é um livro de contos que, como ligação, tem a primeira e a última história. De resto, seus temas e personagens são variados, mas sempre lidando com aquilo que o Bradbury sabe fazer de melhor: memória, tecnologia, humanidade.
Na história que liga os contos do livro, e que dá título a ele, conhecemos um homem completamente cheio de tatuagens. O narrador do conto, um homem comum, se encontra com este homem ilustrado, cujas tatuagens parecem obras de arte, e acaba descobrindo um segredo terrível: as tatuagens do homem contam histórias, se mexem, se movimentam de todas as maneiras. O homem tatuado conta que trabalhava no circo, e quando estava prestes a perder o trabalho, acabou encontrando uma velha senhora que tatuava pessoas, e pensou em ser o homem tatuado do circo. Entretanto, tudo se transformou em uma maldição.
É difícil escolher alguns dos meus favoritos, porque todos os contos são excelentes. Bradbury escreve uma desesperança muito forte, uma melancolia de algo que nunca aconteceu muito impressionante. Li o livro muito rápido, porque queria devorar todas as histórias, e acabei indo dormir algumas noites com o coração apertado de situações terríveis que ele contava em cada um desses textos, mas de uma forma tão bonita, tão delicada, tão simples.
Mas, tiveram alguns contos que me tocaram bem fundo. "A Savana", conto que abre o livro, depois da apresentação do homem ilustrado, conta a história de uma casa inteligente e de dois filhos que não estão muito felizes com o comando dos pais; "O Homem" é um texto muito interessante sobre uma expedição para um planeta em que se descobre que um homem bastante famoso da Terra pode ter estado por lá; "O Homem do Foguete" é narrado por um filho cujo pai é viajante de foguete e como esse trabalho afeta a relação da família; "A Raposa e a Floresta" é sobre um casal que viaja ao passado para fugir de guerras do futuro; "A Cidade", sobre uma cidade construída para se vingar daqueles que destruíram seus moradores; e "Hora Zero", sobre uma invasão alienígena auxiliada por crianças.
Mas meu conto favorito mesmo foi "Os Exilados", em que grandes autores de terror da Terra se encontram vivendo em Marte, e enquanto seus livros existirem, eles seguem existindo. Isso ocorreu porque houve uma grande destruição de livros, no estilo de Fahrenheit 451, que forçou que eles partissem para outro planeta, mas o grupo se encontra perigosamente ameaçado, quando uma nave chega neste local onde eles se encontram agora.
Guerra leva à guerra. Destruição gera destruição. Na Terra, um século atrás, no ano de 2020, eles proibiram nossos livros. Ah, que ato terrível, destruir nossas criações literárias dessa forma! Isso nos conjurou de... onde? Da morte? Do além? Não gosto de coisas abstratas. Eu não sei. Só sei que nossos mundos e nossas criações nos chamaram e nós tentamos salvá-los, e o único resgate possível foi passar o século aqui em Marte, torcendo para a Terra superar esses cientistas e suas dúvidas. Mas agora eles estão vindo nos varrer, nós e nossas obscuridades, e todos os alquimistas, bruxas, vampiros e lobisomens que, um por um, bateram em retirada pelo espaço enquanto a ciência invadia cada país da Terra, até finalmente não existir nenhuma alternativa além do êxodo.
É um texto muito bom sobre como não podemos deixar que a imaginação morra a favor de objetivos 100% científicos, onde há a necessidade de um equilíbrio entre ambas as noções, ficção x realidade, e me fez refletir muito sobre as tentativas constantes de higienizar narrativas, principalmente que acontecem em épocas de premiações, em que o drama e o real não cedem espaço ao fantástico e ao horror, por exemplo.
Foi um livro que me deixou extremamente consternada, mas ao mesmo tempo muito feliz, com uma leitura tão rápida, fluida, delicada e potente. Aproveitei cada segundo. Agradeço novamente ao presente da Day, ficará guardado na minha biblioteca até que eu o revisite em algum momento do futuro e me lembre com carinho dessa primeira leitura.
O Homem Ilustrado, de Ray Bradbury, pode ser comprado na Amazon*, em formato físico ou digital, assim como Algo Sinistro Vem Por Aí e Fahrenheit 451. Licor de Dente-de-Leão, entretanto, só está disponível em versão física.
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*Comprando com meus links da Amazon, você dá aquela forcinha sem pagar nada a mais por isso :)
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