Lobisomens, Shakespeare e Londres

by - agosto 02, 2024


Eu sou apaixonada por Shakespeare. Acho o velho bardo um sacana safado da mais alta qualidade. Macbeth e Hamlet são duas das minhas coisas favoritas, e, sendo uma criança do teatro, como fui, esse cara com certeza foi uma grande influência quando eu era jovenzinha.

Você sabia que o nome Jéssica apareceu pela primeira vez no livro O Mercador de Veneza? Jéssica é um nome hebraico, Yiskāh, e a primeira adaptação para o inglês, Jessica, foi feita por Shakespeare. 

Nessa mesma peça, Shakespeare fala sobre lobisomens. 

Tá, não exatamente sobre lobisomens. Shylock, judeu, é constantemente descrito com características caninas. Para entrar nesse mérito eu teria que fazer uma ampla pesquisa histórica e falar sobre como judeus foram ligados a diversas características abomináveis e repugnantes por causa de preconceito, e deveria me aprofundar no antissemitismo, e discursar sobre esse problema nessa peça em questão, mas não vou fazer isso. (Mas estive lendo esse artigo aqui, se alguém se interessar.)

"Jéssica, mas o que isso tem a ver??? Do que você tá falando? Que relação uma coisa tem com a outra?"

Nenhuma, mas eu gosto de coincidências, então comecei a introdução desse texto dessa forma, pra que vocês tenham uma ideia de como minha cabeça funciona (pista: é uma gritaria aqui dentro, vocês não acreditariam).

Eu comecei a pensar em lobisomens de novo, recentemente, não apenas por causa do novo filme do Kit Harington, nem por causa da música do Motionless in White que eu estive viciada, mas também porque me dei conta da quantidade de filmes que existem sobre lobisomens em Londres e na Inglaterra. 

Pra falar a verdade, mesmo, os lobisomens nunca saem completamente da minha cabeça. Mas às vezes eu penso neles com mais furor.


Então, aos lobisomens. Estive pensando neles quando me deparei com o filme de 1935 O Lobisomem de Londres. É um filme de lobisomens, no começo da era dos Monstros Clássicos da Universal, mas não é O filme de lobisomens da Universal. O representante da classe lupina desse grupo é o Talbot, de O Lobisomem, de 1941. O Lobisomem de Londres, na verdade, foi abandonado ali na esquina do tempo. Mas por quê?

Não sei, realmente, e nem foi isso que mais me chamou a atenção quando voltei quase 90 anos no tempo para refletir. Minha reflexão se concentrou em: Por que tantos lobisomens em Londres? O que tem na água (ou na lua) londrina? Nós temos pelo menos quatro filmes que apontam esse caso: Um Lobisomem Americano em LondresA Mulher-Lobo de Londres, Carnivore - O Lobisomem de Londres, e o próprio O Lobisomem de Londres. Isso seria retroalimentação ou tem algo mais aí?

Uma das histórias de lobisomens mais famosas da era moderna é a da Besta de Gévaudan, ou La Bête du Gévaudan, porque ele é francês. 

A imagem avisa que esse é o monstro que tem desolado Gévaudan, que ataca principalmente mulheres e crianças. 

Entre os anos de 1764 e 1767, uma criatura ameaçava os prados franceses na região da província de Gévaudan, onde hoje se encontra Lozère e Haute-Loire. Nesses dois anos, em uma área de cerca de 80 quilômetros, cerca de 82 a 124 pessoas foram atacadas. Um estudo em 1987 ampliou esse número para 210, com 113 mortos e 49 gravemente feridos (os outros ataques provavelmente foram de ferimentos mais leves). Desses 113 mortos, 98 foram comidos parcialmente. 

O que chama a atenção no ataque de Gévaudan nem é a quantidade de mortos, ou o interesse especial da coroa em descobrir o que estava acontecendo (apesar desses dois elementos serem, sim, interessantes de se pensar; pensem aí e depois me contem). O que me fascina nessa história toda é o período em que ela aconteceu. 

Em 1764 fazia cerca de 30 anos que aconteceram os ataques de Arnold Paole na Sérvia. Paole, uma das minhas figuras históricas favoritas, faleceu em 1726 e, dizem, se reergueu do túmulo cinco anos mais tarde condenando toda a sua cidadezinha ao vampirismo. As autoridades europeias ficaram putas da cara com a repercussão do que estava acontecendo. Foram enviados emissários de vários cantos da Europa; o Papa da época, Clemente XII, já no final da vida, ficou aflitíssimo com essa bagunça toda. Até Voltaire escreveu sobre vampiros (metaforicamente e factualmente).

[Desculpem, não temos imagens do Paole]

Querendo ou não, Arnold Paole nos brindou com um frisson necessário para dar uma força na literatura de vampiros que surgiria ali no século seguinte. Assim como a Besta de Gévaudan. Histórias de vampiros e lobisomens sempre existiram, mesmo que com outros nomes (vamos citar aqui os gregos tipo Ovídio e Plínio e a maravilhosa história nórdica de Bera e Björn, para citar os amigos antigos dos lupinos), mas foram esses dois episódios, e mais a mente muito criativa das pessoas dos recantos mais longínquos da "sociedade civilizada" londrina e parisiense, que principalmente ajudaram a moldar essas criaturas e prepará-las para a literatura do século XIX.

Mas a produção de verdade dessa literatura ficou nas mãos justamente das pessoas da "sociedade civilizada" londrina e parisiense (e alemã, com seus poemas onde mortos buscam donzelas indefesas no além-túmulo, mas vamos focar apenas em Inglaterra e França por um momento).

Então, existiram muitas lendas de lobisomens na Inglaterra, correto? Errado, caros amigos, pelo menos é o que nos conta O Livro dos Lobisomens, de Sabine Baring-Gould. Agora vamos lá: o Sabine era um padre anglicano que viveu no século XIX. Antiquário, ele colhia histórias por aí. E aí ele escreveu um livro reunindo vários folclores de lobisomens. Excelente, né? Apesar da minha pesquisa mais extensa ser concentrada em vampiros, os lobisomens compartilham uma ou duas coisinhas com eles, então eu fui atrás desse livro, e essa maravilha tem uma edição traduzida, lançada pela Aleph em 2008, com tradução de Ronald Klymse. 

Sabine, que além de lobisomens pesquisava danças e músicas folclóricas. Vejam suas feições animadas. 

No livro, o Sabine narra a longa história dos nossos peludinhos favoritos. Mas o que me chamou a atenção dessa vez foi o parco capítulo sobre a Inglaterra. Nele, Sabine conta que a Inglaterra não teve muito folclore envolvendo lobos, canibalismos, essas coisas todas, porque a maioria dos lobos foi morta pelos anglo-saxões quando eles chegaram àquela terra. Tanto que, no folclore inglês, bruxas frequentemente se transformam em lebres e gatos, não em lobos, o que era mais comum em outras partes. (Estou falando da Inglaterra em si, não da Grã-Bretanha. A Escócia, o País de Gales e a Irlanda [que não está na Grã-Bretanha, mas vocês entenderam] não faz parte dessa coisa de morte aos lobos.)

Houve um período de julgamento de bruxas que ficou conhecido como "werewolf witch trials" (julgamento de bruxas lobisomens, ou algo assim) porque uma coisa levou a outra na cabeça daquela galera. Na mesma época em que as bruxas eram caçadas, surgiram muitas histórias de transformações em lobisomens. Bruxas, constantemente, eram "avistadas" montadas em lobos (e cabras, também, mais comumente). Mas isso aconteceu em somente uma parte da Europa. Na Inglaterra, até onde se tem notícias, não. 

Se você assistir A Bruxa de novo, vai ver que a lebre é o animal mais ligado a ela. Lobos, não. Não apenas pela falta de lobos nos Estados Unidos, mas principalmente porque aquelas pessoas no filme de Eggers eram puritanas, eram colonos. Eles vieram da Inglaterra. 


Agora eu retorno a Shakespeare. Como comentei, sem me aprofundar, Shylock era um judeu constantemente comparado aos lobos por suas piores características. Ligando esse querido ao Drácula, de pouco mais de 300 anos depois de O Mercador de Veneza, o Conde é ligado ao vampirismo (objetivamente dessa vez; não apenas uma comparação, ele É um vampiro) utilizando todas as suas piores qualidades e sendo um cara estrangeiro. É no mínimo curioso, vai me dizer?

O horror tem essa característica inerente de lidar com nossos piores medos, individuais e de sociedade, utilizando essas figuras para explicá-los e dar uma cara a eles, e isso para o bem ou para o mal. Sabine fala sobre isso em O Livro dos Lobisomens, e o cara, no século XIX, consegue ser muito direto sobre a questão:

Deve-se observar que a principal sede da licantropia foi a Arcádia, e a causa disso foi atribuída, muito plausivelmente, a uma circunstância específica: os nativos de lá eram um povo pastoral, e por consequência sofriam muito intensamente com os ataque e as depredações dos lobos.

Shakespeare não é terror, mas ele fez isso incontáveis vezes. O fantasma do pai de Hamlet que o avisa que tem algo muito errado acontecendo, dando uma explicação sobrenatural para algo que psicologicamente, em seu coração, ele já sabia. As bruxas de Macbeth que o avisam que o pau vai torar logo menos, algo que já estava com ele, mas que ele precisou de um empurrãozinho sobrenatural para dar vazão. Os lobisomens, os vampiros, bruxa, fantasmas e outras criaturas, como as fadas, os changelings e afins, cumprem esse papel em muita literatura (e oralidade) dos séculos passados: são rostos que podem ser perseguidos. Você atribui sobrenaturalidade para um problema real que você muitas vezes não consegue explicar, dados seus devidos contextos.

A Inglaterra foi um berço muito prolífico para muitas dessas figuras na literatura mais moderna. King comenta sobre os três grandes arquétipos do terror: o monstro, o vampiro, e o lobisomem. Os maiores representantes desses três vieram da ficção inglesa (Frankenstein, Drácula e O Médico e o Monstro). Nós bebemos muito dessa tradição para criar o que hoje sabemos sobre terror. Os tentáculos do imperialismo inglês tiveram muitos desdobramentos, incluindo nosso gênero favorito.

Retorno a pergunta sobre os lobisomens em Londres: retroalimentação? A chamada "câmara de eco cultural", que King comenta em Dança Macabra? Pura coincidência? Enfim, isso é um texto mais de reflexão do que de resposta. Não tenho respostas. Às vezes eu gosto de escrever alguns pensamentos malucos pra poder abrir espaço no meu cérebro e pensar em outras coisas (por exemplo, meu fascínio agora é com os direitos autorais do Ursinho Pooh e o Poohniverso, e como a nova tendência para esses filmes ultraviolentos, tipo Terrifier, ecoa as obras de torture porn dos anos 2000, mas isso fica pra outra hora).

A maior questão que fica é: os lobisomens habitam os prados ingleses ou foram esquecidos?

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