Solidão e o abandono como os verdadeiros horrores em Frankenstein

by - maio 11, 2023


Afinal, o que é um cientista fascinado pelo poder dando à vida uma Criatura a partir do zero perto da total e completa maldade e preconceito do ser humano?

Perdi as contas de quantas vezes li e reli Frankenstein, de Mary Shelley. A ocasião mais recente foi a trabalho. Parece que todas as vezes que leio esse livro eu saio dele com uma coisa nova no coração. A grandeza dos detalhes, a forma como Mary inseriu tantas referências de sua vida ao longo da narrativa que escreveu tão jovem — isso, por si só, um enorme feito, seja hoje em dia, seja em 1816. 

Frankenstein é um dos meus livros favoritos não por acaso. Acho que ele tem uma alma tão profunda, tão decente, tão honesta e ainda assim tão simples, que faz dele mais do que completo: para mim (e para muitos, ainda bem) ele é uma obra-prima de primeira qualidade. Uma das maiores criações humanas, um dos maiores elogios ao ato de saber ler e poder encontrar razão (e um sem-número de emoções) em suas linhas.

Uma coisa que nunca muda, para mim, desde a primeira vez que li esse livro, há alguns anos, é a forma como a Criatura é um ser incompreendido. Abandonado e solitário, a Criatura de Frankenstein é um dos maiores exemplos de como o ambiente e os agentes externos podem alquebrar uma alma, transformar o coração. 

Como uma jovem com tão pouca idade conseguiu expressar em palavras como é se sentir extremamente só, abandonado e desiludido? Se sentir completamente diferente de todos os seus pares, mesmo que eles não fossem iguais a eles, transformando-o em um pária antes mesmo que ele tivesse seus arroubos violentos contra seu criador?

Talvez ela mesma tenha passado por situações em que se sentiu um espírito forasteiro. A história de Mary Shelley é cheia de detalhes tristes, onde ela teve que se diminuir tantas e tantas vezes para caber em lugares menores. Filha de dois gênios da literatura política do final do século XVIII, não digo que ela estava fadada ao sucesso, ou que grandes coisas esperavam por ela. Mas como caber em lugares tão pequenos quando se tem uma alma, um espírito e uma vida tão grandes?

O que eu tiro dessa centésima leitura de Frankenstein, dessa vez, é como a solidão e o abandono são alguns dos verdadeiros horrores que encontramos nessas páginas. 

A narrativa já se inicia com as cartas de Walton contando à sua irmã, Margareth, como este se sente sozinho e como deseja, ardentemente, um companheiro a quem dividir seus momentos felizes e seus momentos tristes. Em sua empreitada pela glória, em um experimento científico que espelha, de certa forma, o do próprio Victor Frankenstein, Walton se encontra solitário. 

Victor, também, ao se encontrar com Walton, se sente solitário, mas por motivos mais complexos. Através do remorso e da miséria que sente em seu coração por ter criado algo tão sacrílego quanto uma Criatura a partir do zero, longe das concepções aceitas por Deus e pela sociedade de dar à vida, Victor se afasta da convivência. Primeiro, se tranca em seu quarto ao longo de seus estudos; em seguida, retornando para a casa de seus parentes, passa três dias, já se avizinhando de sua cidade natal, para ficar sozinho. Quando acontece o incidente de Justine, novamente Victor se recolhe à solidão.

Mas quem mais sofre com a solidão e com o abandono, sem ter escolhido por isso, é a própria Criatura.

Yet mine shall not be the submission of abject slavery. I will revenge my injuries; if I cannot inspire love, I will cause fear.

A solidão da Criatura, entretanto, vem de um lugar completamente diferente da solidão sentida por Walton e Victor. Enquanto os dois, jovens que sonham (e já sonharam, antes) em buscar a grandeza, se sentem sozinhos um por se estimar demais, e outro por se estimar de menos, a Criatura é só porque lhe foi negada qualquer tipo de companhia. Longe de ser um estado que escolheu, ele está ali por imposição.

Walton acredita piamente, como podemos ler através de suas cartas, que os marinheiros que ele escolheu (e alguns até que levou até a morte) não eram dignos de sua amizade. Pessoas simples, até rudes, são meros servos em sua empreitada. Victor, por outro lado, desde que começou sua investigação sobre como fazer vida através do que já está morto, se colocou no lugar de solidão por pura comiseração que sente por si mesmo. Pobre Victor, o jovem rico que, graças a atitudes irresponsáveis, agora se vê seguido por aquilo que não deveria ter feito. 

A Criatura, ao contrário, sonha em ter companhia. Qualquer uma. Ele procura incansavelmente qualquer companhia que possa lhe querer. Vaga por diversos lugares, sendo maltratado e escorraçado por onde quer que passe. Ele só quer alguém para ter com quem aproveitar a vida, que ele, que a ganhou de forma tão a contragosto, acha maravilhosa. 

E desse sentimento de solidão da Criatura nasce sua revolta. Novamente, se comparado a Walton ou a Victor, a Criatura é muito mais humana. Walton e Victor, ao se negarem essa companhia, essa amizade, caem em um lugar de autopiedade que, às vezes, soa ridícula aos ouvidos. Não querem compartilhar seus fardos e suas alegrias com seus iguais, os dois por seus próprios motivos, mas se sentem os seres mais tristes que já pisaram na Terra. 

Enquanto isso, a Criatura é acusada de ser um monstro vil e perigoso. Culpado dos maiores ultrajes (até daqueles que ele não fez), o que resta a ele a não ser pedir uma igual, para que possa ter, também, qualquer um para desfrutar da companhia? E até isso lhe é negado, porque Victor acredita firmemente, desconhecendo completamente aquilo que criou, que a Criatura é realmente um poço de destruição. E é desse lugar que nasce a raiva mais profunda da Criatura. É aqui, também, que a solidão dos três fica tão evidentemente diferente.

Am I to be thought the only criminal, when all humankind sinned against me? (...) I, the miserable and the abandoned, am an abortion, to be spurned at, and kicked, and trampled on. Even now my blood boils at the recollection of this injustice.

Ao longo dos anos, Frankenstein foi interpretado (e reinterpretado e utilizado) de diversas formas. Em sua primeira e mais óbvia camada, vemos uma história de um homem inebriado por poder, que lida com coisas que não deve, e acaba criando um "monstro terrível". Em suas camadas mais profundas, porém, existem tantos temas e detalhes, tantas pequenas belezas e situações aterrorizantes, que poderia gerar conversas por mais quatrocentos anos. Frankenstein, assim, também se torna atemporal. 

Ao longo de sua vida, Mary também se sentiu sozinha diversas vezes. Não por escolha, na maior parte delas. Quando se casou com Percy, por mais feliz que estivesse, Mary foi atirada porta a fora de sua própria casa por seu pai. Ao longo dos anos, com as aventuras do marido e falta de dinheiro, Mary também deve ter sentido o peso da solidão sobre os ombros algumas vezes. E, aos poucos, foi perdendo aqueles que eram mais caros a ela: filhos que não nasceram, ou que nasceram mortos, ou que morreram pouco tempo depois, irmã, Percy, amigos.  

Não posso dizer com certeza que tudo que Mary escreveu em Frankenstein foi totalmente premeditado, se minha leitura dessa solidão que toma as páginas do livro é algo que eu mesma quis ver, que me saltou aos olhos, em um momento em que eu me sinto solitária. Entretanto, se eu pudesse me encontrar com a Mary Shelley uma única vez, eu perguntaria a ela se sua criação monstruosa lhe trouxe algum tipo de acalento. Se ela deixou, pelo menos um pouco, de se sentir sozinha.

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