A Filha do Doutor Moreau, de Silvia Moreno-Garcia

by - abril 06, 2023


A Silvia Moreno-Garcia é uma das grandes autoras da atualidade quando falamos de horror e assuntos afins, e tem feito um sucesso considerável entre os fãs de histórias de mistério. Seu primeiro livro publicado em português, Gótico Mexicano, conta a história sobre uma jovem que viaja ao interior do México, para resgatar uma prima que está em um relacionamento fadado ao fracasso. 

É uma leitura tensa e cheia de características sobrenaturais e estranhas que torna a leitura um prato cheio. O repertório de Moreno-Garcia, quando falamos de terror, é excelente. Além disso, as origens latinas da autora aparecem em suas histórias e isso deixa tudo mais interessante. 

Este ano, a Editora Melhoramentos trouxe a tradução de um dos livros mais recentes de Moreno-Garcia, A Filha do Doutor Moreau (com tradução de Bruna Miranda) e carinhosamente me enviou o livro para resenha. Fiquei muito feliz com o envio, e agradeço muito a Editora Melhoramentos. 

Primeiro contexto: literário

Li A Ilha do Doutor Moreau, de H. G. Wells (na tradução de Laurent de Saes e na edição da Via Leitura) ano passado, alguns meses depois do lançamento do livro da Silvia. Já era um livro que eu queria ler há muito tempo, mas até então tinha adiado essa leitura. É um daqueles projetos que a gente inventa e que nunca consegue cumprir, do tipo "nossa, precisava ler mais coisas do H. G. Wells". Um dia vai dar certo.

Em A Ilha do Doutor Moreau, um náufrago acaba sendo resgatado por um navio onde conhece um homem estranho, chamado Montgomery, que tenta ajudá-lo mas se nega a dar abrigo a ele. Sem ter lugar pra onde ir e sem conseguir nenhum tipo de carona para o continente, esse náufrago vai parar na ilha para onde Montgomery está indo — muito a contragosto de Monty, devemos admitir. E logo a gente descobre o motivo: Montgomery trabalha para Dr. Moreau, um homem ainda mais estranho e isolado do mundo, e que faz experiências, criando híbridos de homens e animais.

O Dr. Moreau é um baita megalomaníaco que acha que a ciência pode explicar tudo e por ela vale tudo. Existem poucas pessoas vivendo na ilha, porque além de tudo ele é paranoico. Montgomery é seu braço direito e faz o trabalho sujo por ele. Um cara bem pocas ideias mesmo.

Nosso náufrago se vê em uma situação complicada quando começa a conviver com esse cenário, essas criaturas, e esses dois homens tão diferentes mas que carregam seus próprios demônios sobre os ombros. 

A releitura

Já em A Filha do Doutor Moreau, de Silvia Moreno-Garcia, as coisas são um pouco diferentes: Vivendo em um local isolado no México, em Yaxaktun, que fica em Iucatã, Carlota Moreau passa seus dias convivendo com seus amigos, Lupe e Cachito, com Ramona, uma mulher que vive na casa e lida com várias questões, para além da cozinha, e com seu pai, Dr. Moreau. Após a demissão de seu antigo ajudante, Moreau precisa de um novo trabalhador em sua propriedade. Montgomery chega até ele apresentado pelo sr. Lizalde, dono da propriedade. 

A propriedade de Yaxaktun é cedida a Moreau por Lizalde para que o homem faça seus experimentos longe de sua terra natal, Paris, pois as pessoas lá não reconheciam seus ideais científicos e ficavam alarmadas quanto a suas experiências. Então, em recompensa, Moreau realiza seus experimentos para Lizalde afirmando que irá recompensá-lo com o que ele precisa: trabalhadores.

E é aí que entra Montgomery e os híbridos. O experimento de Moreau nada mais é do que misturar os genes humanos e animais e criar criaturas a partir disso. Sua propriedade que, para o restante das pessoas, é um hospital para tuberculosos, na realidade é o centro científico de uma tarefa insana. 

Quando Montgomery chega ao local ele logo percebe a estranheza disso tudo, mas uma antiga dívida faz com que ele aceite o trabalho. Montgomery é um cara inglês, que viajou para as Honduras Britânicas atrás de serviço depois de ser abandonado pela esposa e do suicídio da irmã. Lá, ele ficou conhecido após um incidente em que esteve caçando uma onça. Gastando o que tinha e o que não tinha com bebida, acabou caindo nas (des)graças do jogo e devendo uma fortuna. Lizalde comprou sua dívida e, a partir desse momento, Monty trabalharia para onde ele o mandasse. 

A primeira parte do livro se passa em 1871, e a segunda e terceira em 1877, seis anos depois. Na primeira parte Carlota tem cerca de 14 anos, e na segunda próxima dos 20. Monty deve ter ali por volta dos 30, não sei dizer exatamente apesar de me recordar que, em algum momento, ele diga a idade dele. 

O grande ponto de ruptura do que se acredita ser uma vida pacífica em Yaxaktun se concentra na chegada de algumas pessoas estranhas: o filho de Lizalde, Eduardo, e seu primo, Isidro, com alguns homens, enquanto caçam indígenas que fugiram do trabalho escravizado que vinham realizando. Esses indígenas são considerados perigosos pelos herdeiros de Lizalde. Mas logo que veem Carlota, eles desistem das ideias de caça e se interessam pela moça.

Daí em diante, temos diversos pequenos problemas: a descoberta dos híbridos por essas pessoas estranhas, a paixão de Carlota por Eduardo, e as ameaças que Moreau vem recebendo do dono da propriedade pela falta de resultados em sua pesquisa. 


Segundo contexto: histórico

Aqui eu preciso fazer um mea culpa e aceitar minha ignorância sobre a história mexicana. Sei pouco dos conflitos internos e externos daquela parte do continente, e apesar de ter planejado aprender mais, ainda não cheguei nessa parte do planejamento. Adoro estudar, mas como eu disse esses dias no twitter, sou uma mistura difícil de curiosidade, impulsividade e despreparo. Meus planejamentos sempre vão por água a baixo, ou demoram aí seus anos pra acontecerem.

Mas, na edição da Melhoramentos, há uma breve contextualização do que estava ocorrendo no México nesse momento e logo podemos entender como isso foi incorporado na história. Apesar de ficar um pouco óbvio, porque, na base, o que aconteceu no México não é tão diferente do que aconteceu no Brasil, eu sugiro que o leitor leia primeiro esse contexto histórico, em formato de posfácio na página 277.

Em um resumo muito rápido e sem a profundidade que eu gostaria de trazer: o México foi um território disputado desde sua invasão pelos espanhóis em 1518. Com ilhas e territórios cheios de matéria-prima, os espanhóis dizimaram uma quantidade aterrorizante de povos com doenças que, até então, a população local desconhecia. Mesmo depois da suposta "independência" mexicana, com muitas aspas, que aconteceu tecnicamente entre 1810 e 1821, as disputas territoriais continuaram, e as disputas políticas avançaram de forma destrambelhada.

Vou reproduzir abaixo dois parágrafos do posfácio do livro que ajudam a entender melhor o cenário em que ele se passa:

A Guerra das Castas de Iucatã começou em 1847 e durou mais de cinquenta anos. Os maias, povos originários da península, se rebelaram contra os mexicanos, os descendentes de europeus e a população miscigenada. 
Os motivos do conflito foram complexos e ligados a hostilidades de longa data. Os donos das terras expandiram suas haciendas para criar gado e cultivar açúcar. O povo maia era sua principal mão de obra, e os donos das terras tinham sistemas violentos e dívidas e castigos para controlá-los. Outros aspectos de tensão eram os impostos, assim como a violência e a discriminação contra os maias.

Essa parte da principal mão de obra é um dos pontos mais importantes do texto: é graças a isso que Lizalde quer uma mão de obra dócil, e vê nos experimentos de Moreau uma forma de conseguir força e falta de inteligência para manter suas haciendas trabalhando. 

Já Moreau, assim como no livro original, se baseia no princípio científico tão presente no século XIX (e XVIII, também) da criação da vida. Como a vida aparece? O que acontece para criar vida? Frankenstein é um excelente objeto de comparação. Ambas as histórias se apoiam em experimentos científicos reais, ideias que levaram a outros experimentos e assim por diante. A vida, e a fagulha do que se criava vida, era constante objeto de discussão entre rodinhas acadêmicas. 

O que achei do livro (sem spoiler)

Para começar, já quero dizer a você, leitor, que não tá muito afim de ler A Ilha do Doutor Moreau agora, mas que quer muito ler o novo livro da Silvia: tudo bem. A história é uma releitura, e as ligações com o livro original são sempre explicadas (os experimentos, etc). Não há, realmente, nada que você vá perder muito em relação a referências. As obras podem ser lidas de maneira independente. 

Se você já leu A Ilha do Doutor Moreau: eu acho que, pra mim, esse livro se encaixa como um prequel. Tem até uma parte no final que eu diria que é pra se encaixar nessa ideia, mas não vou dizer aqui. Caso alguém queira discutir o final comigo, favor entrar em contato ali no formulário, que eu vou adorar falar um pouco sobre minhas ideias. 

No geral, gostei bastante. É um livro que te prende, te dá vontade de conhecer mais, de saber aonde essa história está indo. Os personagens são interessantes. Eu gostaria de conhecer mais sobre os híbridos. Minha única reclamação é sobre um tipo de interesse que há entre Monty e Carlota (de Monty em Carlota, na verdade), pela diferença de idade entre eles. Mas gostei muito em como a autora transformou o personagem entre o livro clássico e esse. Ele se tornou muito mais humano e muito mais interessante do que o Wells o fez.


Tenho que dizer, também, que a adição do contexto histórico na história original, também, me deixou muito feliz. Eu não sou a maior fã de dramas e romances históricos, mas amo quando outros tipos de narrativas (principalmente terror e mistério) conseguem inserir esses elementos reais ao longo de suas histórias. Isso é, na verdade, um atrativo para mim. E gosto muito quando essas histórias clássicas são recontadas adicionando esses elementos.

A Carlota é uma garota meio ingênua e inocente, até irritante às vezes, mas eu desculpo isso pelo isolamento em que ela vive, sendo paparicada desde cedo pelo pai, com sentimentos conflitantes pelo mundo lá fora. No livro original não temos uma presença feminina, e adicionar uma filha nessa ideia toda de geração de híbridos, isolamento em uma fazenda destinada a pesquisas científicas e como isso é parte da personalidade da personagem também é um ponto extremamente positivo do livro.

Eu gosto muito de ler o que a Moreno-Garcia escreve, e tenho vontade de ler tudo dela, porque gosto das ideias. Mas acho que ainda não encontrei meu favorito dela. Um sentimento de "Adorei isso aqui, mas ainda não é meu favorito, e tenho certeza que vai ter um favorito que vai desbancar todas as leituras"? Estranho né, mas eu tenho essas coisas de vez em quando. Acho que há grandes chances de ser Silver Nitrate, o novo novíssimo que ela lançou esse ano, e que tenho expectativas enormes para ele. 

Agora, uma recomendação. Se você se interessa pela história do México como eu mas conhece pouco e gostaria de ler outras coisas nesse tema, eu não posso deixar de recomendar o excelente As Lembranças do Porvir, livro de realismo mágico de Elena Garro (mesmo que ela, em si, não gostasse muito dessa denominação). É um livro que se apoia fortemente no contexto político pós-década de 1920 no México, um livro triste mas interessantíssimo. Fiz uma resenha dele aqui no blog, caso vocês tenham curiosidade.
 
Tanto A Ilha do Doutor Moreau, de H. G. Wells, quanto A Filha do Doutor Moreau, de Silvia Moreno-Garcia, podem ser comprados na Amazon*, tanto em formato físico quanto em ebook. 

Gostaria de agradecer novamente o envio do exemplar à Editora Melhoramentos. Muito obrigada. 

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*Comprando com meus links da Amazon, você dá aquela forcinha sem pagar nada a mais por isso :)

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