O Velho Barão Inglês, de Clara Reeve
A imagem de capa do livro, utilizada para o destaque do blog, foi retirada diretamente do portfólio da capista, Paula Monise |
Diz-se por aí que o gótico tradicional começou com O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, publicado em 1764. Na história, um lord vê seu poder ameaçado por causa de uma velha profecia que tem tudo para se realizar logo adiante. No dia do casamento de seu filho, um grande elmo (grande mesmo, pelo menos cem vezes maior que um elmo comum), cai em cima do jovem e ele falece. A partir desse acontecimento funesto, mas um tanto excêntrico, se dá início a aventura surpreendente escrita por Walpole.
As pessoas geralmente se esquecem de uma das características mais importantes do gótico tradicional: a excentricidade. Os castelos e os vilões caricatos que quererem fazer matrimônios incestuosos são realmente uma parte importante desse tipo de narrativa, mas é a excentricidade a chave de tudo. E, se tem uma coisa que O Castelo de Otranto é, com sua armadura gigante e desmaios e gritos de horror, é excêntrico.
Mas então, em 1777, após pouco mais de 10 anos da publicação de O Castelo de Otranto, Clara Reeve publicou um tipo de livro inspirado nessa narrativa — alguns acreditam que era para competir com o livro de Walpole, outros acreditam que era uma imitação, mas Reeve afirma que refinou as partes que mais lhe agradavam da narrativa e utilizou só elas, chamando-a de "prole literária de O Castelo de Otranto". Ou seja: Clara Reeve escreveu uma fanfic de O Castelo de Otranto em 1777, intitulada: O Velho Barão Inglês.
Reeve nasceu em 1729. Filha do Reverendo William Reeve, a jovem Clara recebeu uma educação muito mais completa do que muitos de sua idade. Em uma carta enviada a uma amiga, disse que seu pai gostava que ela lia para ele, e que lia muitos clássicos em uma idade em que nenhum dos sexos conseguia ler o próprio nome. Com a morte do pai, Reeve morou um tempo com sua mãe e irmãs, mas logo se mudou para sua própria casa e começou a trabalhar com as letras. Seu primeiro grande trabalho foi a tradução diretamente do latim da alegoria histórica "Argenis", de John Barclay, que traduziu para "The Phoenix", em 1772. Para frustração de Reeve, entretanto, houveram muitas críticas e a comunidade letrada não a recebeu muito bem.
Clara Reeve |
Mas Reeve continuou. Em sua carreira de quase 33 anos de escritora, publicou 24 textos, dentre eles: The School for Widows (1785), um romance epistolar, seguido por Plans of Education (1792); The Progress of Romance (1785); The Exiles, or, Memoirs of the Count de Cronstadt (1788); The Memoirs of Sir Roger de Clarendon (1793). Mas, talvez seu romance mais conhecido, ainda seja O Velho Barão Inglês, que, afirmam, foi de grande influência na literatura de Mary Shelley. Em contrapartida, Lovecraft desprezava a literatura de Reeve (não que altere minha percepção sobre ela, mas fica aí a informação).
Até onde sei, O Velho Barão Inglês foi traduzido duas vezes para o português. Uma delas, em uma edição bastante antiga da Coleção Trevo Negro, não encontrei mais disponível para venda. A edição recente, que li, foi traduzida por Luisa Geisler, lançada em 2020 pela Editora Novo Século, através de sua caixa de assinaturas Escotilha, e é a única edição disponível da obra.
A história do livro é a seguinte: após retornar de uma guerra católica, sir Philip Harclay parte para encontrar seu velho amigo, o lord Lovel. Chegando em seu território, ele descobre algo terrível: uma grande desgraça se abateu sobre seu companheiro de batalha. Ele então entra em contato com o novo lord do local, Fitz-Owen. Lá, conhece seus filhos, seus parentes, e o jovem Edmund, que nasceu em berço humilde mas demonstra grande coragem e nobreza. Lord Fitz-Owen mantém o rapaz sob seus cuidados, e tudo vai bem de início, até que a inveja de seus parentes começa a perturbar o lar dos Fitz-Owen. Essa indisposição é inflamada pelo jovem Wenlock, que é apaixonado por Emma, filha de Fitz-Owen, que dedica uma atenção especial a Edmund. A única forma de diminuir esse problema, é enviando o jovem Edmund para longe.
Edmund havia causado uma grande impressão no lord Harclay, e todos que o conhecem se encantam por ele. Mas há um segredo sobre o passado de Edmund, que o liga fortemente às terras de Fitz-Owen, que antes eram de Lovel, e que pode alterar para sempre o futuro do jovem.
Em meio a aparições fantasmagóricas, intrigas de família, inveja de qualidades cavaleirísticas e segredos que podem abalar as estruturas da nobreza, a história de O Velho Barão Inglês se desenrola. Com essa descrição, o livro se parece um pouco menos com o romance gótico tradicional, e parece estar bastante distante da história de O Castelo de Otranto, mas quando olhamos mais de perto logo percebemos os elementos em comum: um jovem corajoso e destemido, que desconhece seu verdadeiro nascimento; um velho padre que conhece seu segredo; antigas intrigas por conquistas de títulos e terras; um nobre mais velho que está disposto a reconhecer o valor do jovem após ele despertar a ira e a inveja de outra casa importante; e, claro, um velho castelo assombrado por espíritos que tentam avisar de possíveis tragédias.
Mas, como a própria Reeve afirmou em seu prefácio presente na edição, ela pegou os elementos que mais a interessavam em O Castelo de Otranto. Como ela se incomodou com a primeira parte do livro de Walpole, ela quis tentar algo diferente. Então, mesmo que a base seja muito parecida (ou a mesma, para ser justa), e seus rumos sejam parecidos, ambos os livros são muito diferentes. Isso só demonstra como visões sobre um mesmo ponto podem diferir na hora de se contar uma história. Independentemente de quantos elementos sejam iguais nesses dois livros, a história é diferente, e esse é um exercício de observação muito interessante. Porque veja bem: se nas décadas de 1760 e 1770 do século XVIII duas histórias lançadas com o mesmo tema atraíram atenções diferentes, foram contadas de formas tão diferentes, e ainda sim encontraram seu espaço, aquela velha história de que tal tema ou assunto já foi utilizado demais é uma bobagem. Cada um que reconta uma história, a transforma por seus próprios pontos de vista, recorta o que lhe é mais importante.
Devo confessar que gosto mais de Teodoro, protagonista de O Castelo de Otranto, do que de Edmund. Edmund realmente tem uma bondade, lealdade, coragem dignas de uma corte de Arthur, mas falta nele o toque de rebeldia que tem em Teodoro. Teodoro é um jovem afiadíssimo, e deixou tanto Manfredo quanto Frederico de bocas abertas enquanto desafiava ambos com sua sagacidade. O rapaz era uma máquina de argumentação. Edmund, por outro lado, é um jovem muito mais pacífico. Mesmo quando todos estão contra ele, ele tenta continuar agindo com bondade. Se fosse Teodoro no lugar de Edmund, o castelo de Fitz-Owen provavelmente já teria vindo abaixo.
Mas, talvez, a maior diferença entre o livro de Walpole e o de Reeve é o final. O final de O Velho Barão Inglês é absolutamente mais feliz e esperançoso do que o final de O Castelo de Otranto, que, além disso, tem muito mais mortes também. Mas, mesmo assim, são dois livros interessantíssimos do gótico mais tradicional, que influenciaram milhões de outros livros e autores e merecem ser lidos e redescobertos ao passar das gerações.
Compre o livro
O Velho Barão Inglês, como mencionei, só foi lançado aqui no Brasil pela editora Novo Século, através da sua box Escotilha. Ele não está disponível na Amazon, mas tem alguns exemplares na Estante Virtual e no site AmoLer, que tem vendido as caixas avulsas do clube de assinaturas. Comprando pelo site, e recebendo a caixa completa, você ainda recebe o conto "O Papel de Parede Amarelo", de Charlotte Perkins Gilman, em uma mini edição muito bonita.
Já O Castelo de Otranto, também li na versão da Escotilha NS. Ele está disponível tanto para leitura no kindle, através do kindle unlimited, e na versão física na Amazon.
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