Sobre o prazer derivado dos objetos de horror, de Anna Laetitia e John Aikin
Ilustração de uma cena de O Castelo de Otranto |
Muito se fala sobre o grande livro de Noel Carroll, Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração. Já em seu título, nossa atenção se volta à parte "paradoxos do coração". É realmente uma parte curiosa. Por que? Quais são esses paradoxos?
O próprio Noël Carroll, durante a introdução, explica que a parte dos "paradoxos do coração" são de um ensaio dos irmãos Anna Laetitia* e John Aikin, "On the Pleasure Derived from Objects of Terror": "The last chapter deals with our second paradox of the heart — indeed, the paradox for which the writers John Aikin and his sister Anna Laetitia Aikin (Barbauld) originally coined this lovely phrase in the eighteenth century" [Ó último capítulo lida com nosso segundo paradoxo do coração — na verdade, o paradoxo para o qual os escritores John Aikin e sua irmã, Anna Laetitia Aikin (Barbauld) originalmente cunharam o termo dessa adorável frase no século XVIII]. Mas, em relação a esse ensaio particularmente importante da dupla, pouco encontramos na internet. Algumas reproduções, alguns textos sobre a Anna Laetitia, mas não temos uma visão mais completa sobre ele — um texto que é extensivamente utilizado na academia, para tratar de assuntos ligados ao horror.
Anna Laetitia Aikin (Barbauld) |
Usei muito o texto de Carroll nos meus primeiros passos no terror. Ainda o tenho por perto, às vezes, porque apesar de estar um pouco ultrapassado e não concordar completamente com ele, é um estudo importante, feito em um momento em que os estudos sérios sobre o gênero na modernidade estavam dando seus primeiros passos mais fortes — sua publicação original foi em 1990, dois anos antes do famoso Men, Women and Chain Saws, de Carol Clover.
Me deparei novamente com esse ensaio de Anna Laetitia e John enquanto lia a introdução do livro Classic Tales of Horror, da Canterbury Classics, há uns três anos atrás. Desde então, tenho ensaiado traduzir esse texto, mas sempre abandonando em seguida. Dessa vez, porém, acho que consegui.
John Aikin |
Deixo aqui o disclaimer que não concordo com tudo exposto no texto. Mas é um documento histórico sobre os primeiros passos da literatura de horror, escrito por uma crítica e poeta junto de seu irmão, médico e botânico, ambos muito influentes em suas esferas. É minha primeira grande tradução de um ensaio em um inglês um pouco antigo, então também peço paciência, já que não sou tradutora (mas espero ser um dia). Esse ensaio, afinal, foi publicado em 1773. O ensaio foi escrito com muitas referências, então linkei todas que encontrei no momento do texto em que elas estão inseridas. A separação entre os parágrafos, também, são minhas. O texto original continha parágrafos bastante extensos, e achei melhor dividi-los para o bem do leitor.
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Que o exercício de nossos sentimentos benevolentes, chamados adiante pelo vislumbre das aflições humanas, deveriam ser uma fonte de prazer, não se parecem maravilhosos por aqueles que consideram a relação entre a moral e o sistema natural do homem, que estão conectados em um nível de satisfação com toda ação ou emoção produtiva do bem-estar geral. A sensação dolorosa que ascende imediatamente de uma cena de miséria, é muito suavizada e aliviada por um reflexo de auto aprovação ou atendendo a simpatia virtuosa, que encontramos, no todo, um prazer muito refinado e exótico remanescente, que faz com que desejemos testemunhar tais cenas, ao invés de nos afastarmos delas com asco e terror. É óbvio o quanto tal disposição pode conduzir aos fins de suporte e assistência mútuos. Mas o deleite aparente com o qual nós vivenciamos os objetos de puro terror, onde nossos sentimentos morais não são, no mínimo, foco de preocupação, e nenhuma paixão parece estar excitada, apenas aquela do medo, é um paradoxo do coração, com muito maior dificuldade de solução.
A realidade da fonte do prazer parece evidente a partir da observação diária. A ganância com a qual os contos de fantasmas, goblins, de assassinatos, terremotos, incêndios, naufrágios e todos os mais terríveis desastres presentes na vida humana, são devoradas por cada ouvido, deve ser observada. A tragédia, os trabalhos de ficção favoritos, levam a um compartilhamento completo dessas cenas: “está cheio de horrores” — e talvez tenham ficado em débito com suas partes mais ternas e patéticas.
O fantasma em Hamlet, Macbeth descendo até a caverna das bruxas, e a cena da barraca em Ricardo III, comandam com força a atenção de nossas almas como a separação de Jaffeir e Belvidera, a queda de Wolsey, ou a morte de Shore. A inspiração ao terror foi, para os antigos críticos, designado como um peculiar domínio da tragédia; e as tragédias Gregas e Romanas introduziram alguns personagens extraordinários para esse propósito: não somente os espíritos dos mortos**, mas as fúrias e outros fabulosos habitantes das regiões infernais. Collins, em seu mais poético tributo ao Medo, desenvolveu bem a ideia: “Tu, gentil Piedade, reivindica tua parte combinada, No entanto, todos os trovões da cena são teus".
O antigo romance gótico e os contos orientais, com seus gênios, gigantes, encantamentos e transformações, não obstante um crítico refinado possa censurá-los como absurdos e extravagantes, irão sempre conservar a mais poderosa influência na mente, e interessar o leitor independentemente de todas as peculiaridades de gosto. Portanto, o grande Milton, que tem um viés forte para essa selvageria da imaginação, fez, com um efeito marcante, as histórias “de florestas e encantamentos medonhos” um assunto favorito com seu Penseroso, e tinha, indubitavelmente, imagens fortemente despertas em sua mente quando ele irrompe: “Chame aquele que deixou meio contada, a história do bravo Cambuscan”. Como podemos então explicar o prazer derivado de tais objetos? Muitas vezes, fui levada a acreditar que há uma desilusão nesses casos, e que a avidez com a qual nós os presenciamos não é uma prova de que estamos recebendo um prazer real.
A dor do suspense, e o desejo irresistível de satisfazer a curiosidade, quando uma vez criado para nossa ânsia de passar por uma aventura, ainda que soframos uma dor real durante todo seu percurso. Preferimos escolher sofrer a pequena angústia de uma emoção violenta do que a súplica inquieta de um desejo insatisfeito. Estou convencida por experiência que este princípio, por muitas instâncias, possa nos carregar involuntariamente para algo que não gostamos.
Este é o impulso que torna interessante a narrativa mais pobre e insípida, uma vez que a abordamos com justiça; e eu frequentemente senti isso em relação aos nossos romances modernos, que, repousando em minha mesa, e ocupando uma hora ociosa, me levaram às mais tediosas e asquerosas páginas, embora, como Pistol comendo seu alho-poró, eu engoli e execrei até o fim. E não apenas nos forçará através da estupidez, mas também à tortura — pela execução de Damien ou o ato de fé de um inquisidor,
Assim, quando crianças escutam com pálida e muda atenção às histórias de aparição, talvez nós não possamos crer que elas estão em estado de alegria, não mais que o pobre passarinho caindo na boca da cascavel — eles estão com os ouvidos acorrentados, e fascinados pela curiosidade.
Essa solução, no entanto, não me satisfaz a respeito das cenas bem forjadas de terror artificial que são formadas por uma sublime e vigorosa imaginação. Aqui, apesar de sabermos antecipadamente o que esperar, nós as adentramos com ânsia, em busca de um prazer que já experienciamos. Este é o prazer constantemente ligado ao excitamento da surpresa a partir de novos objetos maravilhosos.
Um estranho e inesperado evento desperta a mente, e a mantém focada, e quando a agência de seres invisíveis são introduzidas, de “formas não vistas, e muito mais poderosos que nós”, nossa imaginação, correndo adiante, explora com êxtase o novo mundo que está aberto à nossa visão, e se regozija com a expansão de seus poderes. Paixão e fantasia cooperando elevam a alma ao seu ponto mais alto; e a dor do terror se perde na admiração.
Por isso, quanto mais selvagem, fantasioso e extraordinárias são as circunstâncias de uma cena de terror, mais prazer nós recebemos dela; e quanto mais elas estão próximas da natureza comum, embora violentamente levados pela curiosidade através da aventura, nós não podemos repeti-la ou refletir sobre ela, sem que a dor tenha mais importância. Em 1001 Noites existem diversos exemplos marcantes do horrível acompanhado do maravilhoso: a história de Aladim, e as viagens de Sinbad, são particularmente excelentes. O Castelo de Otranto é uma tentativa espirituosa e moderna com o mesmo plano misto de terror, adaptado para o modelo do romance gótico.
A cena de mero horror natural mais bem concebida e mais fortemente elaborada de que me recordo está em The Adventures of Ferdinand, Count Fathom, de Tobias Smollett, onde o herói, entretido em uma casa solitária na floresta, encontra um cadáver assassinado no quarto em que ele foi enviado para dormir, e a porta se fecha atrás dele. Pode ser divertido para os leitores compararem seus sentimentos sobre estes, e aí formar sua opinião sobre minha teoria ser justa ou não. O fragmento seguinte, em que ambas as condutas são tentadas a ser, em algum grau, unidas, é uma oferenda para entreter uma noite solitária de inverno.
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O texto original pode ser lido aqui. Como disse, ele foi traduzido por mim, na íntegra, por vontade de disponibilizar ele ao mundo, pois eu mesma já havia procurado algumas vezes sem encontrá-lo. Como documento histórico, esse ensaio é importante para analisarmos como os "objetos de terror" eram vistos no final do século XVIII, antes mesmo do surgimento das grandes obras do gênero e, sobretudo, pensadas com a ajuda de uma mulher.
Não é novidade que Ann Radcliffe já havia escrito, teoricamente, sobre o horror, mas Anna Laetitia e seu irmão John também fizeram uma importante contribuição. Em um momento em que os romances sensacionalistas pautados em acontecimentos reais estavam cada vez ganhando mais espaço, os irmãos Aikins saem em defesa dos livros de horror excêntricos e pouco naturais, com seus fantasmas e encantamentos. Um dos maiores preconceitos do horror inicial, aquele parente do gótico, era exatamente suas ideias fantasiosas e excentricidades. Então, levando pelo contexto, é um documento interessante de ser lido.
Fiquei feliz de finalmente conseguir tirar esse projeto da gaveta. Ainda estou no processo de aprendizado, mas quem sabe um dia não consigo trazer outros ensaios sobre terror traduzidos?
* Pesquisando sobre Anna Laetitia encontrei este texto em português do blog Palavra Invadida, que comenta que Anna tinha, talvez, um pouco de mágoa com Mary Wollstonecraft, pois Mary havia criticado a poeta. Então, Anna fez um poema irônico em um tipo de resposta ao livro de Mary, Reinvindicação dos Diretos da Mulher. Achei interessante trazer a informação que ambas estavam em contato de alguma forma.
** Gostaria de deixar o agradecimento especial ao meu amigo Karl Felippe que me ajudou com a tradução correta, dentro do contexto, para as figuras gregas citadas no texto "shades of dead". Karl é uma das pessoas que conheço que tem maior entendimento se tratando de figuras antigas, então muito obrigada Karl!
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