O sonho é o aquário da noite: A Curva do Sonho, de Ursula K. Le Guin

by - março 16, 2022


Apesar de ser uma leitora bastante curiosa e sempre pesquisar muitos títulos e autores, às vezes eu demoro um bocado de tempo para ler essas histórias. Ainda mais em gêneros diferentes do terror. De vez em quando eu preciso de um certo estado de espírito muito específico para ler algumas histórias, como as de ficção científica. Adoro conhecer mais sobre ficção científica, mas acho que diversas vezes tenho muito mais medo e ansiedades lendo esse tipo de livros do que com o terror, e isso exige um pouco mais da minha cabeça.

Infelizmente, por conta disso, por exemplo, eu li pouca coisa da Ursula K. Le Guin até hoje. Li somente O Feiticeiro de Terramar, mais puxado para a fantasia, naquela edição lançada há uns anos, e queria muito ler o resto da saga. Mas os outros livros dela, pelos quais ela ficou realmente famosa, com a ficção científica, não tinha lido ainda. Até que recebi A Curva do Sonho e Floresta é o Nome do Mundo da Editora Morro Branco, e resolvi começar pelo primeiro. 

A Curva do Sonho (com tradução de Heci Regina Candiani), conta a história de um homem que, tendo um dom ou uma maldição, altera a realidade através de seus sonhos. George Orr é um homem bastante comum. De acordo com as descrições feitas dele ao longo do livro, Orr não tem nada muito chamativo à primeira vista. Logo no início do livro, Orr recebe uma visita de um tipo de agente de saúde por ter abusado de alguns narcóticos. De acordo com ele, ele não queria mais sonhar. Orr foi enviado para um tratamento voluntário, algo bastante comum na realidade do livro. Esse tratamento faria com que ele compreendesse quais seus problemas e o ajudaria a largar as drogas. 

Logo que chega e conversa com o terapeuta, Orr conta a ele sobre sua versão dos fatos: ele tem o que chama de sonhos efetivos. Cada vez que tem alguns desses sonhos, ele altera a realidade de alguma forma e somente ele se lembra. De início seu psicólogo, o dr. Haber, não acredita nele. Mas assim que testemunha um dos sonhos efetivos de Orr, ele acaba percebendo que tem ouro nas mãos e passa a alterar a realidade um pouco por vez: dando a Orr algumas coisas que deseja, mas principalmente conquistando cada vez mais poder.


Orr parte em busca da ajuda de uma advogada, Heather Lelache. Alegando que sua privacidade está em risco, Lelache é uma das que não acredita em Orr — até que ela, também, presencia uma dessas transformações. Lelache e Orr acabam criando um forte laço, e a jovem advogada faz o possível para ajudá-lo (ao menos durante os momentos entre alterações em que se lembra dele).

Daí em diante, ao longo do livro, Orr e Haber são os antagonistas em seus desejos e suas discussões levantam pontos interessantes sobre o poder de alterar a realidade e o problema em fazê-lo.

Falo um pouco mais do livro e minhas percepções abaixo. A Curva do Sonho não é um livro que tenha grandes spoilers, e não comento nada sobre os acontecimentos concretos do livro. Mas, caso mesmo assim, você queira mais surpresas, sugiro que pule diretamente para abaixo da linha vermelho, ao final do texto.

A grande jogada de Le Guin, aqui, é que os sonhos de Orr funcionam como uma Pata de Macaco. Eles até podem alterar a realidade e conceder desejos, mas eles agem da forma que eles acham que deveriam agir, e muitas vezes ao pé da letra. Orr explica que, apesar das alterações de realidade, há uma essência que não deve ser alterada, que precisa ser mantida, algo racional que faz com que as pessoas não enlouqueçam. Ele dá o exemplo de não poder criar, por exemplo, um cachorro cor-de-rosa, sem alterar tudo desde o início dos tempos. 

Um dos pontos altos para mim é que todo o livro é permeado por metáforas pesadas sobre a condição de sonhador de Orr, frases que ressoam profundamente em nós mesmos. Não tenho destino algum. Tudo o que tenho são sonhos. E, agora, outras pessoas os comandam" e "Orr nunca tivera qualquer escolha. Era apenas um sonhador. são duas frases que, se tiradas do contexto, dialogam com uma série de experiências opressivas em que não há a possibilidade de reação, mas que ligadas ao contexto da história, são absolutamente literais. Esse jogo de palavras de Le Guin é impressionante, e não foram poucas as vezes que tive que fechar o livro por alguns momentos e refletir um pouco sobre a situação de Orr e sobre a condição de sonhar. 

"Os fins justificam os meios. Mas e se nunca houver um fim? Tudo que temos são os meios." 

A Curva do Sonho é, afinal de contas, para mim, um livro sobre manter o pé no chão, e saber que cada molécula age em um tipo de carretel, um tipo de peças de dominós em fila. Nós devemos, sim, fazer nosso melhor a cada dia, mas isso não significa que devemos esperar pelas alterações mágicas no tecido da realidade, ou mesmo que, em um passe de mágica, nossas vidas seriam resolvidas. A ação tem uma consequência, que leva a outra consequência, que leva a mais outra. O que as realidades de A Curva do Sonho nos mostram, é que um ato desencadeia muitos outros. E para mim isso está no sentido mais literal possível: todas as vezes que Orr sonhou com a paz, havia outro obstáculo mais adiante. Se não fossem os humanos, seriam alienígenas, e se não fossem os alienígenas, seria o poder descontrolado de dr. Haber.

Ele sabia que, à medida que nega o que existe, a pessoa é possuída pelo que não existe, pelas compulsões, pelas fantasias, pelos terrores que se juntam para preencher o vazio. Mas o vazio estava lá.

Orr nunca acreditou que Haber fosse uma pessoa ruim, apesar de lhe fazer muito mal ao explorar seus sonhos da forma que o fez. Mas Haber tinha um problema bastante sério: ele ignorava completamente a ação e a consequência. Ele sabia de todos os problemas que o mundo enfrentava, mas não se importou em lidar com que provocava esses problemas, ele só queria o fim deles. E, como Orr bem sabia, só temos os meios para agir. Quando ignoramos a causa dos problemas, acabamos gerando novos problemas. É pela raíz que Haber deveria ter agido, não pela copa da árvore.

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A Curva do Sonho é um livro curto, e apesar de todos os seus questionamentos e suas metáforas, a leitura flui de forma fácil. Ficamos interessados em saber como Orr lidará com seus problemas, como as coisas irão se desenvolver, como ele recuperará sua vida e se voltará a ser "normal". É um livro bonito e interessante, com momentos assustadores e delicados ao mesmo tempo. Foi uma grata surpresa, estou feliz de finalmente ter lido uma ficção científica (uma distopia? uma utopia?) da Ursula e já estou ansiosa para ler outros livros dela. 

* O livro foi recebido como cortesia da Editora Morro Branco

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2 comentários

  1. Essa foi uma leitura bem surpreendente. Me lembrou de certa maneira A Origem e aqueles questionamentos sobre o que é realidade e o que é sonho.

    PS: você colocou a capa num foco de luz e depois ficou no escuro??

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    1. Preciso muito rever A Origem, amiga. Vi faz anos! Mas adoro essa abordagem sobre sonhos/realidades.

      Coloqueeeeei, é demais, essa capa ficou incrível!

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