Tender is the Flesh, de Agustina Bazterrica
Infelizmente, ou felizmente, existem muitos livros no mundo e não existe tempo suficiente para ler todos. A forma que eu encontro de filtrar o que quero ler, geralmente, é procurando listas — na maioria das vezes procuro por listas sobre autoras mulheres, autoras LGBTQIA+, o que tem sido vendido e falado sobre o terror dos últimos anos, e por aí vai. Já encontrei algumas coisas incríveis assim (e meio que foi assim que conheci o Stephen Graham Jones).
Um desses livros que me saltou aos olhos foi Tender is the Flesh, da autora argentina Agustina Bazterrica. No original, o livro se chama Cadáver Exquisito (algo como Cadáver Exótico), Algumas pessoas, como a Sybylla do Momentum Saga, já haviam me falado dele. Eu fiquei muito curiosa para lê-lo, mas fui adiando, fui adiando, e, enfim, li ele na segunda semana de janeiro. Eu sabia do que se tratava, mas não estava preparada para essa leitura.
- Obs: Leitura escolhida para o mês de janeiro do Desafio Literário Momentum Saga no item: livro que você devia ter lido em 2021 e não leu. Confira o desafio aqui.
No livro, um futuro onde os humanos pararam de comer carne animal — não porque todos se tornaram conscientes dos maus tratos e se tornaram vegetarianos, mas sim porque um vírus tomou conta de todos os animais do planeta Terra, que tiveram que ser mortos e queimados. A solução? Continuar comendo carne. Mas humana.
Só que carne humana não é considerada uma expressão boa. Durante a Transição, o nome dado ao momento pós-virus, muitas pessoas ficaram enojadas por essa possibilidade, muitas delas colapsaram. Então, o jeito foi intitular essa nova carne no mercado de "carne especial". Apesar de comerem carne humana, a sociedade em Tender is the Flesh não gosta que se diga "carne humana", ou "mão" e "pé", por exemplo. É carne especial, ou extremidade superior ou inferior.
"No one can call them humans because that would mean giving them an identity. They call them product, or meat, or food. Except for him; he would prefer not to have to call them by any name."
Acompanhamos Marcos Tejo (o him na citação acima), que trabalha em um abatedouro de "carnes especiais". É considerado o braço direito do chefe, um homem de confiança, um homem sério. Apesar de questionar o que o mundo se tornou, ao longo da narrativa percebemos que Tejo é um daqueles trabalhadores que, faça chuva ou faça sol, vai realizar seu trabalho. No que se refere a sua vida pessoal, entretanto, Tejo é um homem quebrado. Seu pai foi um dos que colapsaram durante a Transição; e ele perdeu o filhinho pequeno para uma doença. Desde que seu filho morreu, sua esposa foi morar com a mãe. Tejo é um homem sozinho.
Esse novo mundo, essa realidade criada por Bazterrica, tem suas particularidades. Enquanto é permitido comer carne humana — aquelas vendidas no mercado legal, criadas para isso — é proibido manter escravos em casa para trabalhos, domésticos ou não. O protagonista do livro se lembra de um caso em que uma família foi sentenciada a virar carne especial por ter comprado dez "cabeças" e as treinado para serviços. Na imprensa, a opinião era de que "escravidão é barbárie". Vários casos como esse são retratados ao longo do livro. E esse é um ponto importante e decisivo para o livro, é um detalhe que trará uma série de consequências adiante.
As palavras têm um peso forte durante toda a narrativa . Agustina Bazterrica explora a hipocrisia e exploração capitalista e dominante em Tender is the Flesh. Enquanto pessoas com mais dinheiro conseguem comprar a chamada carne especial, muitas não têm essas condições. Há aqueles que ficam ao redor dos matadouros para tentar conseguir um pedaço de carne que seja, mesmo que seja estragada. Pessoas que reviram o livro por comida, pessoas que vendem familiares mortos. E, claro, imigrantes, estrangeiros, carne importada. Todos esses elementos só demonstram como esse é um mercado desleal e absurdo. Há uma discussão muito interessante sobre classe social no texto de Bazterrica.
"In some countries, immigrants began to disappear in large numbers. Immigrants, que marginalized, the poor. They were persecuted and eventually slaughtered. Legalization occurred whern the governments gave iun to pressure from a big-money industry that had come to a halt. They adapted the processing plants and regulations. Not long after, they began to breed people as animals to supply the massive demand for people."
Mas quando você transforma pessoas em propriedade, você tira coisas muito básicas delas, e faz com que outras pessoas também queiram tirar vantagem. Em determinado momento, por exemplo, é descoberto que um membro da guarda noturna violentou uma das "fêmeas" até a morte. A preocupação, tanto de Tejo quanto do dono do matadouro, é que eles terão que ser ressarcidos desse valor e a empresa terceirizada de segurança trocada.
É nessa aura de absurdo, horror, e situações indigestas que nos deparamos com a criação de Bazterrica. Um futuro após uma epidemia aterrorizante, que levou todos os animais a serem mortos — inclusive os animais de estimação —, em que as pessoas têm medo de saíram até a rua sem um guarda-chuva, pois podem ser pegas por algum pássaro que sobreviveu, em que pessoas são criadas em laboratório para servirem de alimento, Bazterrica nos faz contemplar nossa própria vida hoje em dia. É assustador pensar que, se isso realmente acontecesse, se houvesse um vírus e que as pessoas matassem a todos os animais, a carne humana seria uma opção.
No fundo, é difícil acreditar. Mas há algo real ali, nas palavras de Bazterrica, nas ações de seus personagens, que nos fazem acreditar que isso seria possível. Até mesmo provável.
Quando comentei sobre esse livro e sobre o que ele se tratava, me perguntaram "mas e comer vegetais?". Eu pensei nisso logo de cara. Mas é esse o ponto alto do livro de Bazterrica. Comer vegetais, legumes e frutas, tudo isso seria muito simples. Mas a carne é uma indústria extremamente lucrativa. E não é, mesmo hoje?
Tender is the Flesh não é um texto panfletário sobre vegetarianismo ou veganismo como pode parecer (mas a própria autora já comentou a questão sobre parar de comer carne). Ao meu ver, o buraco é muito mais embaixo. Estamos falando de ambição humana e hierarquia social, capitalismo desenfreado e as tentativas de uma classe dominante (no pré-vírus) de se manterem dominantes mesmo depois que o mundo entra em colapso. Mas é difícil não questionar nossas opiniões e escolhas lendo um livro como esse. As questões sobre vegetarianismo e veganismo acabam surgindo somente como um bônus. Algo mais a se pensar, além das outras mil questões que surgem ao longo do livro.
Quando criança, quando tinha cerca de 10 anos, eu visitei o frigorífico onde minha mãe trabalhava. Foi um dos momentos mais desconfortáveis da minha vida. Tender is the Flesh trouxe de volta alguns daqueles momentos, muito nítidos, muito tenebrosos. Foi uma leitura pesada, me deixou de estômago embrulhado em algumas partes, e me vi desesperada em alguns momentos. O final me deixou completamente sem chão, e eu não passava por uma experiência dessas há algum tempo — apesar de estar só fazendo leituras excelentes, essa aqui foi algo muito além. Minha cabeça está fervendo até agora.
E novamente eu levanto a bandeira das autoras da América Latina. Tem ficção incrível sendo escrita nessa parte do continente, e Marcos Tejo, o personagem principal, me lembrou um pouco o Edgar Wilson, de Ana Paula Maia; e a escrita corajosa de Bazterrica é algo que temos encontrado bastante por esses lados. Da ficção atual, ler autoras da América Latina e da Ásia tem sido uma aventura e tanto. Conhecer outras histórias, outras vozes, que não só as norte-americanas e inglesas, é fundamental.
ATUALIZAÇÃO:
A DarkSide Books lançou a edição brasileira com tradução de Ayelén Medail e o título Saboroso Cadáver. Então fica aí a recomendação!
Compre o livro:
- Tender is the Flesh: Kindle Unlimited | Ebook
- Saboroso Cadáver: Amazon | Loja DarkSide Books
Lembrando que, comprando com meus links da Amazon, você dá aquela forcinha sem pagar nada a mais por isso :)
1 comentários
Eu acho esse livro e essa proposta excelentes pra DarkSide. É a cara deles.
ResponderExcluirAdorei a resenha!
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