Incidente em Antares, de Erico Verissimo
Eu gosto de anotar os livros que leio e, no final do ano, fazer um balanço do que li e do que deixei de ler. Quando fiz a lista de favoritos de 2021 eu percebi que tinha lido poucos livros escritos por brasileiros — e ensaios, e não ficção, e livros de pessoas não brancas — e que era algo que queria melhorar esse ano. Acabou que não aconteceu exatamente da forma que eu queria, tudo bem, vou manter essas leituras para 2023. Mas uma coisa que consegui, sim, fazer, foi ler mais livros que estavam parados aqui na minha estante ou no meu kindle.
Isso foi ótimo, na verdade. Encontrei alguns bons livros que ainda não li e, dos que eu tinha certeza que não iria ler, doei vários para a biblioteca pública aqui da cidade.
Quando fui escolher minhas leituras, prestei atenção nos livros que comprei e que me deixaram numa baita vontade de ler e que, por um motivo ou outro, acabei adiando. Quando viajei esses dias atrás para Ribeirão Preto, eu pensei "está na hora de desbravar Antares com Erico Verissimo", e assim começou minha saga ao lado dos Campolargos, dos Vacarianos, e de todos os personagens excêntricos e tão, tão humanos que fazem parte da vida social de Antares.
Eu nunca tinha lido nada do Verissimo antes e isso só completa a lista de todos os livros que quero ler e que ainda não li, autores que quero conhecer e não conheci, clássicos que eu inclusive tenho e ainda não me aventurei. Mas, levando em consideração meu gosto e minha personalidade, achei que seria perfeito começar com esse livro. Eu sabia o básico do básico: certo dia, mortos de Antares se levantam de seus caixões e aterrorizam a cidade. Mas todo o resto foi uma completa surpresa pra mim, e foi uma grata surpresa.
Na primeira parte, denominada "Antares", conhecemos a história da cidadezinha desde que foi fundada até o momento em que a crise dos defuntos se deu. Através de um narrador que nos conta, com a ajuda de diários e afins, todos os pormenores da localidade, vamos descobrindo uma teia complexa de afinidades e desafetos sociais, até mesmo pequenos delitos e grandes crimes que ocorreram por ali. Tudo começa com o mais velho Vacariano daquelas paragens, que era um homem de muitos dotes, muitas riquezas. Certo dia, chegou um naturalista francês no pequeno rancho de Francisco Vacariano, e lhe contou sobre a estrela de Antares. Velho Chico achou bonito, achou que o nome parecia ter a ver com antas, e acabou utilizando o nome de Antares para a cidadezinha que começou a crescer por ali.
Por muitos anos Vacariano reinou soberano no lugar, até chegar o primeiro Campolargo e ambos se tornarem inimigos jurados. Foram 70 anos de agruras. Acompanhar a narração da treta dos dois é simplesmente uma das partes mais divertidas do livro. E quem deteve que isso virasse (mais) morte, já depois de 70 anos de brigas, quando quem reinava nas famílias era Xisto e Benjamin, foi Getúlio Vargas, que obrigou a ambos a fazerem as pazes.
Neste romance as personagens e localidades imaginárias aparecem disfarçadas sob nomes fictícios, ao passo que as pessoas e os lugares que na realidade existem ou existiram são designados pelos seus nomes verdadeiros.
Acho que isso foi uma das coisas mais divertidas pra mim. Ao longo do livro, Verissimo utiliza diversas passagens histórias para falar sobre o que havia em Antares. E o mais louco é que a população de Antares poderia ter saído de um jornal atual. É um pouco assustador perceber que os medos de hoje são tão parecidos com os medos (absurdos, posso dizer) do passado. Dizem por aí que a história é cíclica, mas lendo Incidente em Antares hoje, depois de todos os absurdos que presenciamos nestes últimos seis anos de (des)governo, eu diria é que não soubemos lidar com nossos fantasmas — ou, como no caso da cidade, com nossos mortos.
E não sabemos mesmo. Desde que o Brasil é Brasil há um medo, que eu acho que foi implantado no cérebro de algumas pessoas fracas e de mente frágil, que o país está a um passo de se tornar um país comunista (e, sinceramente, isso não poderia estar mais longe da verdade). Isso permeia Antares, e permeia o Brasil até hoje. Verissimo escreve sobre o assunto usando o sarcasmo e o cinismo, e encontramos razão na voz de Padre Pedro-Paulo, padre chamado de "comunista" pela "elite" antarense, mas as similaridades entre lá e agora são preocupantes e aterradoras (apesar de, claro, até cômicas).
Comunista é o pseudônimo que os conservadores, os conformistas e os saudosistas do fascismo inventaram para designar simplisticamente todo o sujeito que clama e luta por justiça social.
Pois, voltando ao livro. A vida política do Brasil foi extremamente importante para Antares e isso fica bem claro ao longo da narrativa.
A segunda parte, já, intitulada como "O Incidente", culmina, bom, com o incidente. O ano é 1963. Ebulição política no cenário nacional. A elite brasileira (tonta, desde sempre) e algumas caças apaixonadas pelo caçador pedem a intervenção militar nacional. Por outro lado, os trabalhadores também não estão nada felizes com a situação em que estão vivendo.
Há uma greve acontecendo em Antares. Todos os trabalhadores de todas as indústrias e afins da cidade pararam. A cidade não tem energia, e diversos outros serviços estão parados. Apesar das discussões, não se chega a uma resolução com os gerentes das empresas. Em uma quinta-feira 12 de dezembro daquele ano, algo estranho acontece: sete pessoas de Antares morrem — entre eles, a atual matriarca dos Campolargos, Quitéria. Os trabalhadores de Antares, que se juntaram para protestar se uniram também aos coveiros da cidade e decidiram em pronto: ninguém enterra seus mortos na cidade. Há cerca de 400 protestantes em frente ao cemitério, e de lá ninguém passa.
O problema começa de verdade quando estes mortos acordam e se levantam de seus caixões, exigindo serem sepultados como mandam os rituais. Se eles não forem atendidos, se sentarão no coreto da praça e apodrecerão lá.
Isso nem poderia ser tão ruim, vá. O problema é que um dos mortos, o advogado Cícero Branco, decide expor todas as hipocrisias, crimes, idiossincrasias e pormenores da vida política, pessoal e social da cidade. Acompanhado dele estão os outros mortos, que conhecem bem demais as atrocidades e crueldades do local.
E é aí que a coisa pega. E é aí que o negócio esquenta. Porque é essa exposição, é a hipocrisia dessa gente do fim do mundo de Antares, que escancara uma realidade do Brasil que é muito difícil de engolir: as pessoas são assim. Elas sabem da truculência policial, elas sabem da corrupção de certos empresários, e sabem também que há algo de muito errado na estrutura social brasileira que vem desde muito cedo, que faz com que a marginalização de grupos específicos seja feita a olhos vistos, e eles simplesmente não se importam.
Abaixo, vou deixar um trecho do discurso de Cícero Branco, e vocês podem linkar com conhecidos de vocês.
Todos sabem que o Coronel Tibério é o presidente de honra dos Legionários da Cruz, cujo lema é Deus, Pátria, Família e Propriedade. Ora, as relações de nosso furibundo pró-homem com Deus são só de cumprimento, de longe, apenas um toque de dedo na aba do chapéu. O velho Vacariano não reza, não vai à missa e nem se confessa, e durante toda a sua gloriosa existência teve incontáveis oportunidades de transgredir os dez mandamentos. Pátria? A flor dos Vacarianos ama tanto a sua, que tem passado a vida a lesar os cofres públicos e a mamar nas tetas desta pobre República. Ah, mas com a família o caso é diferente! O Coronel Tibério preza tanto essa instituição, que em vez de uma mulher tem duas: a legítima, que vive no palacete que vemos ali na esquina, e a ilegítima, instalada numa outra casa e numa outra rua. Agora, acima de Deus, acima da Pátria, acima da Família, o nosso Tibério, imperador de Antares, adora a Propriedade, e é capaz de matar e até de arriscar-se a morrer para defender as suas propriedades, aumentando-as à custa da propriedade alheia. Daí o seu sagrado horror a qualquer mudança do presente status quo político, econômico e social que tanto lhe convém.
Extremamente cirúrgico, né? Escrito em 1971, Incidente em Antares foi publicado em plena Ditadura Militar que também é criticada por Verissimo.
Agora, uma observação. A minha edição é de 1975, da antiga Círculo do Livro. De princípio, a linguagem que já caiu em desuso de diversos pontos do texto me chamou muito a atenção, e não sei como está em edições mais novas. O fato de serem falas vindas destes personagens da qual o autor chama tanto a atenção ao expor seus crimes, também há de se levar em consideração. Por isso, vários amigos que me perguntaram o que eu estava achando da leitura disse que isso tinha sido um ponto para mim, mas até aí também não posso dizer tanto sobre isso porque, como disse, minha edição é de 1975.
Acho que foi uma excelente leitura em um momento muito propício. Acompanhar as notícias de bloqueios nas estradas enquanto lia sobre as desventuras do povo antarense que, sem dúvida, seriam patriotas no para-choque de caminhões por aí, me fez refletir muito. Será que um dia vamos transpor essa barreira da necessidade da sociedade brasileira de manter esse abismo entre uma justiça social, algo que é bom para a população no geral, para que só uns poucos possam ter a possibilidade de viver dignamente com muito mais do que precisam, enquanto milhares passam necessidade todos os dias?
Eu não sei. Incidente em Antares não me respondeu isso. Mas, de certa forma, me deu muito o que pensar, e me acalentou um pouco, também. O que nossos mortos diriam se eles se levantassem qualquer dia? Será que estamos vivendo de acordo? Tomara que sim.
Em 1994 foi lançada uma minissérie que adapta o livro de Verissimo. Originalmente com 12 capítulos, ela também entrou naquela lista de minisséries que foram editadas em filmes e que estão disponíveis na GloboPlay. O elenco conta com Fernanda Montenegro, Paulo Betti, Diogo Vilela, Gianfrancesco Guarnieri, Marília Pera, e outros grandes nomes. Assisti ao filme, que ficou com duas horas de duração, e apesar de alguns cortes bruscos eu gostei bastante da adaptação. Não sei se gostei da resolução, que é pouco diferente da original, mas no geral é um bom filme. Menos cômico e menos crítico do que o livro, mas é um bom complemente da obra original.
Incidente em Antares, de Erico Verissimo, pode ser comprado na Amazon*, em formato físico ou em formato digital. Mas há diversas outras edições por aí, e pode ser facilmente encontrado em sebos também.
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