3 histórias curtas que utilizam e subvertem o mythos de Lovecraft
Por muitos anos da minha vida eu fui uma leitora de H.P. Lovecraft. Já o defendi como um grande escritor, já fiz projetos de leitura dos contos dele, já fui uma pessoa fascinada por tudo que envolvia o autor. Assisti documentários, li biografias, ouvi álbuns e bandas inspiradas nele, procurei filmes adaptados de suas histórias. O Horror Sobrenatural na Literatura, seu ensaio sobre histórias de horror, foi uma das leituras importantes para a minha monografia.
Aí teve um dia que tudo mudou. Eu desencantei, como num passe de mágica. Mas não foi mágica: foi repertório. E foi compreensão sobre o que eu gostaria de ler e sobre o que eu estava lendo. Lovecraft foi um grande escritor, mas foi um grande racista também. E não foi um racista quietinho, foi um racista alarmante, que gostava de deixar derrubar em suas obras o quanto achava todos os não brancos criaturas horrendas.
Superei Lovecraft, passou. Não sou apegada, e já não me sentia com vontade de ler os contos do autor e aqui abro um parêntese somente para dizer que isso é um problema meu. Eu acho que as pessoas têm que ler o que elas quiserem, contanto que tenham o pensamento crítico e entendam o contexto da produção. O terror não superou Lovecraft ainda. Suas obras realmente foram importantes, ele influenciou grandes escritores.
E o que fazer com essa influência, então?
Mais do que sair por aí batendo no peito e dizendo que Lovecraft era racista, alguns autores resolveram usurpar elementos tipicamente dos mythos do Lovecraft e transformar essas histórias em algo deles. Para eles.
Separei três contos de três autores que trabalharam os mythos retirando elementos de Lovecraft e colocando os seus próprios, de suas culturas, e de suas vivências. São três contos que acrescentam personagens protagonistas que dificilmente seriam protagonistas nos trabalhos de Lovecraft; em cenários que dificilmente seriam cenários de Lovecraft.
"Jéssica, mas Lovecraft já saturou, pra que se dar ao trabalho?" Porque todos os dias surgem novos leitores. Todos o dias pessoas procuram indicações de livros e sempre vão cair em algum livro do Lovecraft. Não tenho certeza que o caminho seja simplesmente fingir que o autor não existiu. Seu trabalho é lido todos os dias e é um dos primeiros nomes que encontramos quando buscamos "autores de terror" no google. E, novamente, eu acho que todos devem ler o que se interessam. Mas gosto, também, de mostrar que esses elementos estão em outras leituras, que é possível uma literatura de qualidade com esses elementos lovecraftianos e que não mantém a mesma visão xenófoba e racista que ele tinha. E, novamente, repertório. Existem grandes autores que têm livros incríveis prontos para serem conhecidos. Se esses elementos chamam a atenção dos leitores, acho correto evidenciá-los. Pois vamos a eles.
A Balada de Black Tom, de Victor LaValle
LaValle é um queridinho meu. Desde o primeiro lançamento aqui no Brasil, com A Balada de Black Tom, tenho feito o possível para acompanhar o que ele tem feito. O que, aliás, tenho deixado a desejar, já que tem tantas coisas dele que ainda não li (e, aliás, ele escreveu um dos segmentos do filme antológico Horror Noire, que estou bem curiosa pra ler, porque tem também roteiro da Tananarive Due). Mas enfim, em português foram lançados, pela Morro Branco, A Balada de Black Tom e Changeling. O primeiro (lançado pela editora com a tradução de Petê Rissati), como o próprio LaValle afirma, é uma homenagem e uma crítica ao Lovecraft. Uma releitura de "Horror em Red Hook", um dos contos mais problemáticos do autor, LaValle reconstrói e altera diversos pontos do texto, transforma o protagonista em um homem negro e trabalhador que vê, com seus próprios olhos a magia acontecendo no bairro de Red Hook. Lovecraft escreveu o conto muito inspirado por suas próprias ideias, de como ele via a população do local. Tendo se mudado para Nova York para se casar com Sonia Greene, ele nunca "se acostumou". Greene escreveu, mais tarde, que "sempre que nos víamos cercados por multidões racialmente mistas que caracterizam Nova York, Howard ficava lívido de raiva" e que ele "quase perdia a cabeça". Fiz uma resenha do livro em 2019 que pode ser lida aqui.
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"Sob a Água Negra", de Mariana Enriquez
Uma das minhas autoras favoritas, Mariana Enriquez trabalha com elementos de horror cósmico com uma certa frequência. Alguns destes podem ser vistos no Nossa Parte da Noite, e até mesmo em Este é o Mar. Mas é em "Sob a Água Negra", conto presente no livro As Coisas que Perdemos no Fogo (Intrínseca, trad. José Geraldo Couto), que encontramos uma referência direta. Em determinado momento, um personagem diz que "em sua casa o morto espera sonhando" e, em determinado momento, a protagonista lê, em uma parede, uma frase confusa que, entre as letras, forma a palavra Yog Sothoth. O conto de Enriquez também tem bastante de Horror em Red Hook, mas foca em uma situação muito mais complexa, com o tema da violência policial sobre jovens da periferia e como esses locais são esquecidos pelas autoridades (somente em relação aos seus cuidados, claro, pois sempre é o primeiro lugar em que eles vão para procurar suspeitos e afins). O livro inteiro é uma aula, e quero relê-lo para fazer uma resenha completa, mas este conto traz toda a essência do horror lovecraftiano, tratando de um tema atual, com uma narrativa cativante e surpreendente.
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"A Mulher dos Pés Molhados", de Cristhiano Aguiar
Esse, na verdade, foi o verdadeiro motivo para fazer esse texto (o assunto parece meio batido, né?). Presente no livro lançado recentemente Gótico Nordestino, o conto "A Mulher dos Pés Molhados", de Cristhiano Aguiar é mais sutil ao utilizar os mythos e, ainda sim, parece ter uma influência lovecratiana interessante. No conto, uma jovem, chamada Elvira, que rompeu os laços com seu pai, acaba se reencontrando com ele depois que ele descobre que ela está grávida. A família de Elvira guarda um segredo que chegou com seu avô, em um navio não se sabe vindo de onde. Em uma viagem com seu pai até Campina Grande, na Paraíba, cidade onde seu avô chegou, a mulher vai procurar algumas respostas no navio, que esteve submerso por todos esses anos. Nas coisas de seu avô foi encontrado um estranho livro intitulado De Vermis Mysteriis. Ainda não terminei de ler o livro, mas o conto me chamou a atenção. Além, claro, do elemento marítimo que está presente em Lovecraft, Cristhiano Aguiar utiliza assombrações e sonhos de maus presságios para contar a história de Elvira. E, claro, temos o De Vermis Mysteriis, grimório famoso que foi incorporado em algumas obras do Lovecraft, mas foi criado por Robert Bloch. Mesmo que não tenha sido a intenção do autor, é interessante termos esses elementos lovecratianos em uma história que se passa no Nordeste brasileiro e que tem como protagonista uma mulher grávida.
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Bônus: Lovecraft Country
Para minha vergonha absoluta, até hoje não terminei de assistir Lovecraft Country, apesar de ser uma série excelente e que eu estava amando cada segundo. Mas eu tenho mesmo esse problema com séries. Assim que possível, vou pegar para rever todos os episódios. Mas é aquela dica que, se tratando do assunto desse texto, eu não poderia deixar de colocar aqui. Acho que é o maior exemplo de subversão de elementos lovecraftianos e de horror cósmico além de, claro, tocar fundo na ferida dos problemas do autor. Fiz uma resenha do livro que inspirou a série assim que ele foi lançado aqui no Brasil e pode ser lida aqui. A série está disponível na HBO Max.
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