A Saga dos Brutos, de Ana Paula Maia
Por vezes pegamos alguns livros que nos estapeiam com a realidade. Realidade que, muitas vezes, até conhecemos, mas que ou decidimos ignorar ou fogem de nossa mente e dificilmente pensamos nelas. Ignoramos muitas vezes as histórias de pessoas que, sem elas, não teríamos serviços básicos; ou, ainda, ignoramos as histórias de pessoas que simplesmente existem e empurramos para longe de nossa mente.
Ana Paula Maia conta algumas histórias de personagens ficcionais que poderiam existir em qualquer lugar do mundo. Um mundo cruel e doloroso, o mundo que existe e que empurramos para debaixo do tapete.
Já na apresentação de Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, livro que traz duas novelas, a que dá título ao livro e "O Trabalho Sujo dos Outros", é dito que ambas as histórias contidas ali são "compostas de homens-bestas, que trabalham duro, sobrevivem com muito pouco, esperam o mínimo da vida e, em silêncio, carregam seus fardos e o dos outros." As duas novelas fazem parte de uma trilogia, A Saga dos Brutos, que termina (e começa) com Carvão Animal. As três histórias apresentam trabalhadores braçais, um abatedor de porcos, um coletor de lixo e um bombeiro, que tem um irmão que trabalha como cremador de corpos numa casa funerária da cidade de Abalurdes.
"Os textos, em tom naturalista, retratam a amarga vida de homens que abatem porcos, recolhem o lixo, desentopem esgoto e quebram asfalto. Toda imundície de trabalho que nenhum de nós quer fazer, eles fazem, e sobrevivem disso. Fica por conta do leitor medir os fardos e contar as bestas."
Essa apresentação, escrita pela própria autora, já carrega muito do que ela faz ao longo das páginas da trilogia: a escrita de Ana Paula Maia é instigante, bem amarrada, bem estruturada e extremamente humana.
Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos
A história de Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos começa com Edgar Wilson esperando o carregamento de porcos para abater. Seu ajudante, Gerson, não pode ir, e em um diálogo que beira o cômico, o absurdo e o completamente natural, decide mandar Pedro, seu irmão, para ajudar Edgar. E, entre várias diálogos tão absurdos quanto o primeiro, Edgar acaba descobrindo algumas coisas sobre Pedro que ele se sente perturbado.
"Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, Edgar Wilson não reclama da vida."
Edgar Wilson é um personagem turrão, bruto, assim como os outros personagens da trilogia. Ele faz seu trabalho sem reclamar e segue adiante. Pelos capítulos da novela vamos conhecendo mais sobre ele, sobre suas crenças, sobre seu amigo Gerson e sobre o que motiva os dois. E percebemos também que Edgar Wilson tem seus próprios sentimentos. Ele é leal ao cachorro Chacal, que sempre escolhe para as apostas, é leal ao seu amigo Gerson, que sofre de problemas nos rins, é um homem firme no que acredita.
"Cão de rinha é um cão que não teve escolha. Ele aprendeu desde pequeno o que o seu dono ensinou. Podem ser reconhecidos pelas orelhas curtas ou amputadas e pelas cicatrizes, pontos e lacerações. Não tiveram escolhas. Exatamente como Edgar Wilson, que foi adestrado desde muito pequeno, matando coelhos e rãs."
"Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos" pode deixar um gosto ruim na boca. Todas as situações são irônicas e bastante absurdas, as interações entre Edgar Wilson e Gerson são estranhas, eles naturalizam momentos que seriam bizarros se víssemos acontecendo, mas ao mesmo tempo são extremamente comuns. Parece natural para os personagens agirem daquela forma, porque a narrativa de Ana Paula Maia os cria daquele jeito.
O Trabalho Sujo dos Outros
Erasmo Wagner é um coletor de lixo e, várias vezes, ignorado e mantido distante da sociabilidade por causa de seu serviço. Parece que não vemos com bons olhos quem presta um serviço tão digno (e necessário) como qualquer outro. Ainda mais.
"Na escala decrescente de famintos e degenerados, ele ocupa um posto pouco acima dos miseráveis. É como levar um tiro de raspão."
Na própria novela, durante uma greve dos motoristas dos caminhões de lixos, a cidadezinha começa a perecer pela falta do serviço. Fechamos os olhos para esses servidores e Ana Paula Maia chega com dois palitos e os mantém abertos enquanto conta a história desse personagem tão extraordinário e tão comum.
"Chorume é um choro interminável e maldito. São lágrimas deterioradas de olhos flagelados."
Assim como Edgar Wilson, Erasmo Wagner é um cara bruto e que foi agredido até não poder mais pelo sistema. Foi preso logo cedo, após matar um homem. Cumpriu sua pena, trabalho sempre depois disso, mas prefere se manter distante das pessoas. Entretanto, ao mesmo tempo, Erasmo Wagner tem suas preocupações e suas sensibilidades: ele teme pelo irmão, que é muito novo, que tem ficado cada vez com mais sequelas de seu trabalho com uma britadeira, destruindo estradas e reparando-as. Erasmo Wagner não fecha os olhos para seu passado, terrível, e cuida de suas cabras leiteiras no fundo da sua casa. Faz carinho nelas, divide as tarefas com seu irmão. É um homem bom, seja lá o que isso possa significar, que foi massacrado pelas circunstâncias.
Durante "O Trabalho Sujo dos Outros" conhecemos outros dois personagens: Alandelon, irmão de Erasmo Wagner, e Edivardes, primo dos dois. Edivardes trabalha limpando caixas de gordura, caixas d'água, esgotos, o que vier pela frente. Alandelon, como mencionado, trabalha em uma empreiteira. São personagens importantes e interessantes que, assim como Erasmo Wagner e Edgar Wilson não são muito bem vistos, tratados com descaso e empurrados para longe do campo de visão. E uma das características mais incríveis dos textos de Ana Paula Maia é exatamente isso: ela explora os personagens protagonistas (os dois E.W., que se tornam três em Carvão Animal) e os personagens secundários com as mesmas forças e atenções.
Carvão Animal
Ernesto Wesley é um bombeiro. Uma atividade vista com um pouco mais de nobreza pela sociedade do que a dos personagens de Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, mas, ao mesmo tempo, não pensamos muito no esforço que a atividade pede, a responsabilidade que ela carrega, o quanto esses homens se tornam responsáveis quando algo não sai como planejado. Ernesto Wesley enfrenta o pior dos acidentes, socorrendo vidas, indo onde outras pessoas não querem ir e vendo coisas que outras pessoas não querem ver: pilhas de corpos, incêndios, acidentes de carros e morte a todo tempo.
"Tudo se torna pequeno quando deparado com a morte. Não uma morte calma, sonolenta, mas a morte que espedaça, desfigura e transforma seres humanos em pedaços desconjuntados."
Ernesto Wesley tem um passado triste, vive sozinho com seu irmão Ronivon e a cadelinha Jocasta. No quintal, tem um minhocário, que cultiva com cuidado, vende para pequenos agricultores e pescadores. Jocasta foi uma cadelinha adotada, que Ernesto encontrou e levou para casa, a alimenta com semente de girassol para que seu pelo cresça bonito, e tem muito orgulho do animalzinho, que cuida do minhocário e do quintal com garra.
"Foi assim por toda uma tarde de verão. Em momento algum falaram de desgraças, mesmo cercados e aterrorizados por elas. As lembranças de dores eram suprimidas pelo que tinham de melhor, e o melhor que tinham era a vida, e chegará o momento em que ela deixará de existir para todos. Eles celebravam o fato de estarem vivos, mesmo sem perceberem. São eles homens que aprenderam a seguir em frente e a direcionar o olhar para o foco menos miserável possível."
Nos confins do Brasil, em cidadezinhas interioranas, em periferias, em cidades pequenas que ficam à margem de metrópoles, as vidas de Edgar Wilson, Erasmo Wagner e Ernesto Wesley não parecem tão macabras assim. Conviver com essa realidade é comum em um sem número de lugares: pessoas que seguem adiante com trabalhos pesados, com a morte, com a experiência terrível de sobreviver e se agarrar à vida da forma como podem, com as alegrias que podem.
As vezes nos colocamos em um pedestal inatingível e esquecemos de olhar ao redor.
Ler as histórias que Ana Paula Maia escreveu nessa trilogia é desconfortável e triste. Triste porque você se apega aqueles personagens, sabe que são reais em algum lugar, que a vida é difícil e ingrata, que sobreviver pede força que as vezes a gente não tem. Não tem horror sobrenatural, não tem figuras demoníacas e de outros lugares, que vão te acordar no susto de madrugada, há apenas a crença e a existência daquelas pessoas. Mas é uma realidade horrível, desconfortável, que muitas vezes escolhemos não pensar e que não pensamos muito sobre elas para não nos tirar o sono.
Ana Paula Maia não nos deixa esquecer, não nos deixa fechar os olhos, nos força a olhar para além do nosso umbigo. A violência é escancarada, mas não só a violência do corpo. É um terror palpável e honesto, em uma escrita objetiva e crua.
Os dois livros estão disponíveis no Kindle Unlimited e eu recomendo fortemente que sejam lidos.
Compre os livros
- Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos
- Carvão Animal

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