Terráqueos, de Sayaka Murata
Existem momentos na vida que tudo parece muito abstrato, muito confuso. Nada faz muito sentido, parece que não pertencemos a esse lugar, parece que tudo a nossa volta está errado. É um sentimento comum. Mas, algumas pessoas sentem isso com mais força que outras. Algumas pessoas, até, levam esse sentimento ao extremo.
Em Terráqueos, de Sayaka Murata, lançamento da editora Estação Liberdade, com tradução de Rita Kohl, nós vemos alguns desdobramentos desse sentimento — e mais, vemos muito mais.
No livro, Natsuki narra sua vida, de sua infância até sua vida adulta e como ela sente não pertencer a esse mundo. Quando criança, inclusive, Natsuki se envolveu com a história de que era uma guerreira mágica e que seu ouriço de pelúcia, Piyut, é na verdade um extraterrestre do planeta Powapipinpobopia. Seu primo, Yuu, que também era seu namorado, também teria vindo desse planeta. A intenção dos dois era retornar para Powapipinpobopia e serem quem eles eram de verdade.
Natsuki, desde pequena, é rodeada por adultos problemáticos. Sua mãe sempre diz a ela que tudo que ela faz é errado e que não presta para nada, dando uma clara preferência a sua irmã, Kise. Seu pai não faz muito para ajudá-la, servindo de capacho para sua mãe e irmã. Durante a preparação para o colégio, Natsuki foi abusada por seu professor do cursinho, um universitário que todos consideravam bonito demais. Quando tentou contar a sua mãe, a mulher colocou a culpa na criança, dizendo que ela é quem tinha pensamentos sujos e que jamais o professor faria algo com alguém tão imprestável.
Uma série de acontecimentos se passam na vida de Natsuki nesse período, o que faz com que ela se afaste da família, e de Yuu, a quem só via uma vez ao ano no período do Obon, em agosto. Anos se passam, Natsuki se passa e crê que está longe das garras da família.
Mas as coisas não são fáceis assim. Para Natsuki, há uma fábrica de gente que a persegue e a quer em suas fileiras, sendo submissa ao seu controle. Para ela, humanos são feitos para gerarem outros humanos. E essa não é a vontade de Natsuki, tanto que seu casamento é um casamento de fachada, e seu marido logo aceitou esse estilo de vida. Eles não tem uma relação amorosa, é mais uma relação de companheirismo, tentando fugir da fábrica — ou, para nós, das regras da sociedade. Mas, em diversos momentos, vemos que eles nutrem um sentimento de companheirismo muito forte, talvez muito mais forte se fosse uma relação estritamente sexual, para procriação.
Tenho me interessado cada vez mais por narrativas asiáticas que são chocantes e quebram completamente nosso conhecimento de mundo. Me senti assim quando li Declínio de um Homem (que tem resenha aqui), me senti assim quando li Miso Soup (e falei um pouco sobre ele no meu instagram, aqui) e senti isso quando li A Vegetariana. Os dois primeiros são livros japoneses, o terceiro é um livro sul-coreano, e eles tem algo em comum, apesar de serem de locais e momentos diferentes: os três são narrativas cotidianas, que acabam descendo em uma espiral de loucura e que flertam abertamente com elementos de terror, transformando-os em narrativas esquisitíssimas.
Agora, não estou dizendo que isso é um ponto tradicional asiático ou algo do tipo, nem que todas as narrativas asiáticas acompanham essa mesma frequência. O que aponto aqui é uma correlação em um estilo que, difícil de ser classificado, acaba não caindo em estilo nenhum. Drama? Terror? Narrativas do Absurdo? Eu diria que tem um pouco de cada. E digo que essa forma de contar histórias é pouco ou raramente presente em narrativas europeias e norte-americanas.
Como já mencionei algumas vezes, principalmente nos textos sobre As Lembranças do Porvir e A Última Névoa, esse tipo de coragem também é encontrada em escritos latino-americanos. Cito também As Coisas que Perdemos no Fogo, Pássaros na Boca, A Fúria, Terra Fresca de sua Tumba. Dadas as devidas diferenças regionais e devidas diferenças de temas, existe uma coragem de arriscar, de tratar tabus, de afundar de cabeça em um lamaçal de estranheza que nem todos os leitores estão prontos para mergulhar.
Todos esses livros me fizeram sentir como se eu estivesse sendo sugada para um universo de loucura, seja pelas atitudes de seus personagens, seja pelos rumos que a história (ou histórias) acabam tomando hora ou outra.
Menciono esses sentimentos porque sou muito adepta de que conheçamos narrativas fora do que estamos acostumados. Sei como são gostos, e sei que às vezes uma história mais simples possa chamar mais atenção, mas há um universo lá fora para ser explorado. Um universo que não cabe em determinadas categorias e regras pensadas para determinadas ficções. Acho isso fantástico mesmo.
No fim, Terráqueos é uma história alucinante que desembesta e cai em um buraco profundo de absurdos e quebras de tabus. Canibalismo, incesto, assassinato, e o horror de regras impostas das quais não nos encaixamos. O livro é uma viagem interessante pela mente de uma personagem única, que às vezes nos deixa aterrorizados, e às vezes nos deixa compadecidos de sua situação. Uma história que será difícil, para mim, superar tão cedo.
Peguei a recomendação da querida Gabi Barbosa, que tem um blog, um instagram e cursos incríveis para quem curte leitura. Conheçam o site dela clicando aqui.
- Esta resenha foi recomendada na campanha da editora educativa Twinkl sobre a importância das mulheres na literatura.
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Lembrando que, comprando com meus links da Amazon, você dá aquela forcinha sem pagar nada a mais por isso :)

2 comentários
Eu já tinha visto um texto, acho que na revista 451, falando sobre esse livro. Aí depois que a Gabi deu a dica de que era bom, me interessou. Essa sua resenha agora me convenceu de que preciso mesmo ler.
ResponderExcluirEu fiquei muito atormentada com as partes finais dele, Sybylla do céu. Eu já tinha uma noção de que era uma loucura (a Gabi tinha comentado nos stories dela), mas nossa. Me deixou sem ar. Precisei colocar um episódio de desenho pra dormir.
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