Missa da Meia-Noite, a nova série de Mike Flanagan

by - setembro 29, 2021


Sou uma grande fã do trabalho do Mike Flanagan. Já falei sobre ele aqui no blog uma vez, e desde que vi Hush, que foi o primeiro dele que vi, comecei a acompanhar seu trabalho. Para mim, a ideia de terror do Flanagan é muito semelhante a minha. Gosto da forma como ele utiliza os elementos insólitos e de medo para contar suas histórias, que geralmente são dramáticas e exploram o pior de nós mesmos. Sinto muito do King nele, e gosto muito das adaptações dos livros do autor que ele já fez. Doutor Sono, por exemplo, é um dos meus filmes favoritos, e todas as mudanças que ele fez me deixaram satisfeita. Também sinto um pouco de Shirley Jackson nele, e A Maldição da Residência Hill é uma das coisas que não me canso de ver. Já vi sete vezes a série completa (o que pra mim, que não sou muito de séries, é muito). Escrevi sobre as duas séries de The Haunting of (Hill e Mansão Bly) aqui

Em sua nova série, Missa da Meia-Noite (Midnight Mass), Mike Flanagan continua trabalhando e aperfeiçoando seu estilo, lapidando seu terror, e utiliza inspirações e elementos extremamente pessoais de sua carreira e de sua vida para fazê-lo. Na série, um misterioso padre chega até uma cidadezinha bastante sofrida e esquecida, que fica em uma ilha. Com ele, chegam mistérios e milagres, e situações estranhas começam a ocorrer. 

O texto a seguir tem spoilers


Missa da Meia-Noite já começa, em seus primeiros episódios, com elementos que conhecemos bem. Há elementos de outros trabalhos de Flanagan, seja em adaptações, seja em obras originais suas, seja em inspirações do cineasta. Logo de cara, o isolamento e a tempestade que se aproxima me lembrou, por exemplo, A Tempestade do Século, de Stephen King. Flanagan é um grande fã do autor, e suas inspirações são visíveis no trabalho. Mas há algo primordial do próprio Flanagan ali, que podemos reparar logo nos primeiros minutos se prestarmos um pouco mais de atenção: todas as pessoas daquela ilha estão quebradas ou tem alguma coisa, em seus íntimos, que as fazem incompletas. 

A ilha de Crockett é afastada do continente, nublada, e tem algo de cidade fantasma ali; muitas pessoas abandonaram o local, as outras que restaram não conseguiram sair — independente do motivo. Alguns, inclusive, retornaram contra a vontade. O que restou no local são personagens cansados, com algo destruído (e destrutivo) dentro de si, ou algo em seus passados que os fazem relembrar diariamente de dores e tristezas. Aquela velha coisa dos fantasmas do passado, que Flanagan sempre trata tão bem.

Na sinopse oficial lançada pela Netflix, o único personagem mencionado é o Padre, mas, como em outras obras de Flanagan, essa é só a ponta do iceberg. Se você conhece outros filmes e séries do cineasta, sabe que ele gosta de dar protagonismos para vários personagens de uma vez. De certa forma, conforme percebemos no trabalho de Flanagan, são as histórias dessas pessoas que valem. 

A primeira cena de Missa da Meia-Noite traz Riley (Zach Gilford) após um acidente cometido no continente. Mais tarde, descobrimos que Riley estava dirigindo bêbado, atropelou uma jovem e foi preso pelo crime. Quatro anos se passam até que ele retorna para a ilha em que sua família ainda reside. Lá encontramos o ressentimento de seu pai com o que aconteceu, a própria vergonha em retornar para o local do qual ele queria tanto sair, e seus sentimentos conflitantes de frequentar a igreja com sua família.


A igreja tem um papel fundamental na série. É nela que a cidade se reúne, é ela que traz o "novo" padre, é ela que uma das personagens mais irritantes que Flanagan já criou habita como um tipo de soberana. Beverly (Samantha Sloyan) é uma mulher ativa na comunidade, principalmente no que se refere à Igreja. Uma mulher que segue uma hierarquia muito firme: acima dela só estão o Padre e Deus. Abaixo dela, todo o resto. Uma mulher desagradável, que se acredita mais cristã que os outros, mas não tem qualquer tipo de senso de caridade ou medo dos julgamentos ao sujar as mãos com sangue alheio — desde que isso seja para seu benefício, ou benefício do padre.

Entre esses personagens importantes também temos Erin (Kate Siegel), uma mulher que deixou a ilha muito nova, se casou no continente mas fugiu de seu marido quando descobriu que estava grávida; Dra. Sarah (Annabeth Gish), a única médica da comunidade; Joe (Robert Longstreet), o bêbado da cidade, que certo dia disparou sua arma e acertou Leeza (Annarah Cymone), a deixando paraplégica; o novo xerife da cidade, Hassan (Rahul Kohli); e diversos outros membros da comunidade que acabam orbitando e protagonizando os conflitos que se seguem.

Além, claro, do Padre Hill (Hamish Linklater), figura central em tudo o que acontece na série. Se de início pensamos que Riley é a figura mais próxima de um protagonista que nós temos, poucos momentos depois temos a certeza de que o Padre é o centro gravitacional da obra.

Logo de início eu tive certeza que tinha alguma coisa errada, e nos primeiros minutos do primeiro episódio eu tinha um chute de que a série não seria só sobre fantasmas metafóricos e dramas do passado, como a maioria dos trabalhos de Flanagan. Havia algo de sobrenatural muito real ali (dentro da lógica da série). Há uma cena em que Riley espera ser convidado pela mãe para entrar em sua casa, em que eu desconfiei que aquilo não era só um período de reflexão. De cara eu pensei "essa série vai ter vampiros. pode não ser o Riley, mas serão vampiros". A cura através do "sangue de Cristo", a Leeza caminhando até o altar, as pessoas rejuvenescendo, todos esses pequenos elementos me fizeram imaginar que estávamos nos preparando para entrar nesse território, no território vampiresco. E dito e feito, a confirmação veio no final terceiro episódio.


Assim que tive a confirmação de que era mesmo um vampiro que estava por trás desses "milagres", me veio imediatamente a ideia na cabeça: e se o Drácula tivesse completado seus planos e conquistado uma ilha para criar um novo exército de seres das trevas? Vampiros sanguinários agindo sob seu mando? Porque, apesar das intenções do Padre Paul (que logo descobrimos ser o Monsenhor, rejuvenescido por um típico vampiro do velho mundo) parecerem boas, se você tem o mínimo de conhecimento sobre vampiros vai saber que dar sangue dessas criaturas para um monte de gente é uma atitude pouco inteligente, eles se tornarão vampiros mais cedo ou mais tarde.

Bev, nessa perspectiva, age como um Renfield religioso e, muito pior, sã, capaz de abrir todas as portas graças a sua influência na comunidade. Mesmo que as intenções do Padre fossem boas, as de Beverly não são totalmente. 

Padre Paul/John acaba caindo em um dos mais antigos truques: o dos falsos profetas. Ao imaginar que o vampiro do velho mundo era um anjo, permitiu que ele entrasse em sua comunidade. Acreditando que ele poderia curar a todos, acabou fazendo com que todos fossem mortos, e Crockett sumisse do mapa. 

Em determinado momento, um dos personagens diz que "isso não altera quem nós somos", e acho que é um dos pontos centrais da série: não é a transformação em vampiro que transforma aqueles personagens aparentemente comuns e bons em criaturas monstruosas. Em seu íntimo, eles já eram. Todos eles estão quebrados, tem algo de macabro e sinistro dentro de si, sofreram grandes perdas ou desilusões. Mas os que lutaram contra isso, geralmente os personagens mais infames da cidade, resistiram a esse poder assombroso. Joe, o cara mais odiado da cidade, não se transformou em vampiro. Riley, estigmatizado pelo crime de dirigir bêbado e atropelar uma jovem, ao se transformar em vampiro nega de toda a forma compactuar com a matança e prefere a morte por exposição ao Sol. Sarah, Erin, Hassan, eles não querem esse tipo de benção, eles não querem essa "Nova Ordem".


Vemos todos os dias o que a fé cega pode causar, quando o lobo vestido de cordeiro se apresenta e é tido como o benfeitor. Missa da Meia-Noite expõe esses perigos de forma muito direta: o vampiro aqui é o predador, que foi dado o passe de entrada para um banquete de destruição, e tido como anjo pelos líderes religiosos do local. Mesmo que a palavra vampiro não seja utilizada em momento algum da série, fica bastante claro a subversão da criatura que Flanagan faz: o vampiro não é mais a figura de estigma social, estrangeira, forasteira, marginalizada. O vampiro aqui é um animal predatório. Sua influência sobre as pessoas e como elas decidem agir a partir disso é uma escolha que somente elas podem fazer. Não é um problema de transformação. 

Aliás, outro ponto crucial da narrativa é que, assim como King, Flanagan teve problemas com os vícios, e a forma como ele lida com esse tema em seus trabalhos demonstra uma necessidade constante em abrir os olhos do público para os vícios descontrolados, sem estigmatizar as pessoas que caem em suas garras. As clínicas de reabilitação em Doutor Sono, Residência Hill e agora em Missa da Meia-Noite são um lembrete constante a se procurar ajuda, a não deixar se dominar pelo vício e pela vontade. Os personagens de Riley e Joe cometeram seus crimes enquanto duas pessoas que cederam ao vício mas, no amago, não eram pessoas ruins. Flanagan deu a eles o destino de morrerem antes de se tornarem monstros; mas deixando claro que não era de sua natureza, eles foram vítimas de suas condições. 

É interessante, também, como o Flanagan trata o pré-morte, o famoso "encarar sua vida antes de morrer". Em Residência Hill, Nell acaba revendo diversos pontos de sua vida como a moça do pescoço torto e isso afeta completamente suas decisões enquanto mulher adulta. Em Mansão Bly, personagens revivem seus últimos momentos em um emaranhado de memórias até perceberem que já viveram tudo aquilo, e entenderem que estão mortos. Erin, em Missa da Meia-Noite, retorna ao momento em que conversa com Riley sobre o que acontece conosco quando morremos, e percebe como seu corpo está ligado a tudo a sua volta. A morte é um dos elementos mais fortes nas narrativas de Flanagan, e acho que Missa da Meia-Noite, e mesmo A Mansão Bly ou Residência Hill, demonstram como esse fator tem um forte domínio em suas narrativas.


Eu poderia passar várias laudas falando sobre como gostei das escolhas de Flanagan: a escolha corajosa de tirar Riley de cena, depois de termos nos apegado a ele, achando que ele seria o protagonista da temporada; a escolha dos personagens que resistem ao canto da sereia das bênçãos do Padre Paul; Hassan como mulçumano e a forma como a ilha e seus personagens lidam com isso, os mínimos detalhes que Flanagan acrescentou — da construção da imagem dessa ilha até os pequenos detalhes de personalidade dos personagens que a habitam. Não acho que seja meu trabalho favorito do cineasta, mas consigo sentir o sentimento que ele quis passar com essa história. E gostei de sua capacidade ao fazê-lo. 

Mas, apesar de todos os pontos positivos, é preciso entender que Missa da Meia-Noite talvez não seja para todo o público, mesmo os que gostaram de outros trabalhos do Flanagan. Sendo uma história pessoal, fincada em raízes católicas e de vícios, com um foco maior em desenvolvimento de personagens e sentimentos do que em reviravoltas e sustos, a trama pode se parecer arrastada. Flanagan apela ainda mais para o drama nessa série do que nas anteriores, mas um tipo de drama diferente. Há algo que difere esse trabalho de Flanagan, mesmo que seja notavelmente seu. Todos os elementos estão lá, mas a grande tragédia é vivida por um grupo de pessoas muito maior, dessa vez. Além da tristeza e das consequências individuais, é no grupo que os acontecimentos se mostram mais terríveis. 

O que eu percebo, tendo acompanhado a maioria dos trabalho de Flanagan, é que ele tem um domínio muito próprio ao contar suas histórias. Sabemos que são suas, mesmo quando ele escolhe adaptar algo. Ele sabe quais elementos são mais interessantes para ele, quais escolhas e caminhos deve seguir. Seu trabalho tem, cada vez mais, atingido um nível de crescimento que me deixa ansiosa para ver o que ele fará a seguir. 

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2 comentários

  1. Texto excelente, Jéssica, parabéns!
    Ass: Queops

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  2. Jéssica 🗣🗣🗣🗣
    Eu assisti a série, justamente por amar o trabalho dele em Doutor Sono. Acho que a muito tempo não vejo uma série tão boa sobre o tema, com essa pegada do Flanagan. Quando aquele baú chega na casa do padre, eu já imaginei q era vampiro e quis surtar demais. Vampiros em uma ilha com poucos habitantes e todos desesperados por fé, acertou na mosca. Eu espero muito que tenha uma próxima temporada no mesmo nível, mas que não se alongue demais pra não perder a originalidade.
    Seu texto tá impecável, como sempre e até o próprio Flanagan leria e te aplaudiria. Adorei 🖤

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