Senscientes | Manifesto de um zumbi
Se você já assistiu algum filme de zumbi já deve ter se perguntado, ao menos uma vez, como um zumbi se sente.
Bom, um zumbi se sente mal, muito mal. Você sente tudo. Ao contrário do que todos pensam você não para de sentir, mas você entra em suspensão. Eu digo isso porque, no momento, eu sou um zumbi. E é muito difícil dizer e aceitar isso, mas só piora. O cheiro, as dores, e tudo.
Tudo começou uns meses atrás quando a epidemia teve início. Foi tudo tão de repente! Ainda estão tentando entender de onde essa porcaria veio. Alguns apostam em um acidente químico, mas já teve gente falando até que era coisa de aliens. Eu não consigo duvidar de mais nada depois de me encontrar nessa situação.
Primeiro veio a dormência. Eu estava no ônibus, voltando para casa depois de uma visita aos meus pais. Minhas pernas começaram a ficar dormentes. Eu imaginei que as 5 horas na mesma posição fossem as responsáveis, mas depois vieram os braços e a cabeça. Eu fiquei em estado de paralisia, assistindo e sentindo tudo que meu corpo fazia sem conseguir conversar ou dizer pra me deixarem em paz, que não era culpa minha e etc, e não adiantava. Aparentemente todo mundo estava bastante assustado, enquanto a carnificina rolava solta dentro do ônibus. Por algum motivo alguns foram afetados de forma mais rápida que outros.
Essa ideia de que você consegue super força quando se torna um zumbi é mentira, ok? Só que você está em suspensão. Seu corpo é dominado por alguma coisa, então ele não tem noção do que é certo e errado e ele faz o que bem entender. É quase aquele negócio de que a gente usa 10% do cérebro e essas coisas de ficção científica, só que pior, porque sem sua consciência fazendo o que deveria fazer com seu corpo — ou seja, controlando ele — você faz absurdos. Eu comi a metade das pessoas daquele ônibus. E com metade eu quero dizer que eu comi a metade de cima deles, porquê na verdade não sobrou ninguém.
Quando essas coisas acontecem e você perde o controle de você mesmo, existem muitas pessoas que vão tentar te parar. Ou seja: enquanto metade da população perde o controle sem querer, a outra metade perde o controle pelo gosto da selvageria. Não demorou muito pra que aparecessem caçadores de zumbis e ficássemos completamente ameaçados. Foi assustador. Claro, minha mente conversava comigo mesma, dizendo que era assustador. Mas meu corpo via alguma coisa brilhante e corria até o objeto, não importava se fosse uma faca ou uma arma.
Percebi também como zumbis são criaturas realmente burras. Eu nunca fui muito inteligente nem fiz coisas brilhantes, mas eu tinha noção do perigo. Quando você vira zumbi você perde a noção, fica louco, você ignora completamente que objetos brilhantes e pontiagudos ou que pareçam uma arma de fogo sejam perigosos. Tentaram me matar (por mais que eu já estava sendo considerada morta) de muitas formas, mas mesmo burra como um cadáver e sem noção do perigo, por algum golpe de sorte ou azar eu escapei até aqui. Até me pegarem pra testes e me estudarem.
A dor não é menor, ok? Quando cortam suas pernas porque você é um perigo e aquelas pessoas estão tentando se defender (ou te caçar, que seja) é uma coisa. Quando abrem seu peito pra fazerem testes, nossa, é muito pior. Eles queriam saber o que eu sabia, o que eu sentia, e enquanto eles faziam o que queriam com meu corpo, eu sentia tudo. Afinal, eles não se importam em dar anestesia em algo que teoricamente está morto. Eu senti tudo. Todos os cortes, toda a eletricidade. Eu sempre tive muito carinho pelo monstro do Frankenstein, mas depois de tudo isso eu comecei a querer vingança no lugar dele.
Lógico que não consegui vingança. Nem por mim, nem por ele. Nesse momento eu estou presa. Depois de alguns meses com a epidemia, eles começaram a criar tecnologias que auxiliassem no controle da praga para que não tomasse proporções maiores. Parece que os seres humanos conseguem agir muito rápido quando é pra algo do interesse deles. Temos até psicólogos de zumbis, sabiam? Vocês estão lendo minha história através de um aparelho que consegue escrever o que eu penso. Arrojado, né? Porque eu penso. Eu não tenho controle sobre mais nada, mas minha cabeça funciona.
E eu não faço ideia de onde estão meus pais, minha família ou meus amigos. Eu perdi todo mundo.
Meu coração não bate como antes, e meu sangue não circula da forma que circulava, mas eu sinto, e eu penso, e enquanto sinto e penso e vejo tudo o que aconteceu comigo, eu sinto tanta falta. Essas coisas acontecem tão rápido e a gente perde tudo.
Mas a gente continua sentindo. E vendo. E pensando. Tá? A gente tá aqui ainda. Completamente sem controle, mas estamos.
Esse texto acompanha o texto da Nina Bichara— Apresamento.
Resolvemos dar vida aos pensamentos de monstros que normalmente não pensam, ou que pelo menos assim pensamos que seja.
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